“O Cálice e a Espada”
Existe um livro fantástico para quem quiser desmistificar a imagem do homem como detentor da força e poder e a mulher como frágil e figura secundária em praticamente todas as situações: “O Cálice e a Espada – Nosso Passado, Nosso Futuro” da socióloga, advogada e ativista social Riane Eisler, Editora Palas Athena, 2007. Esta obra trata da transformação da cultura patriarcal, não defendendo uma reconstrução de uma sociedade matrística de dominação e competição, mas sim de parceria e união, de paz e conciliação; a solidariedade deve ser o fundamento de uma cultura não alienada pela cultura patriarcal. Diz Humberto Maturana no prefácio do livro sobre o papel do homem numa sociedade matrística:
“O mesmo papel de agora. Participar com a mulher na criação de nosso viver cotidiano, mas sem centrar a relação nas conversações de guerra, competição, dominação, autoridade, hierarquia, luta, controle, propriedade, segurança, certeza, obediência ou poder, mas na colaboração, aceitação, conspiração (co-inspiração), conversa, ajuda, confiança, convivência, acordo, compartilhamento, beleza e harmonia.”
Maturana ressalta que esses elementos ocorrem na cultura patriarcal, porém totalmente desvirtuados, negando a colaboração através da dominação ou da competição, fazendo desaparecer o acordo por força da hierarquia da obediência, esquecendo a co-inspiração por força do controle e do poder, acabando com o compartilhamento mediante a apropriação, e esquecendo a conversação em meio à exploração.
A ARTE E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Riane Eisler comenta em seu livro que o sistema androcrático* reafirma seu controle sempre que possível e isso não é diferente nas artes. Os temas violentos na literatura e na arte contra a mulher cada vez mais frequentes são resultado dessa necessidade de reforçar a dominação da cultura androcrática. O estuprador Don Juan mostra que o tema da violência repressiva contra as mulheres é um indicador ainda mais específico de tempos de violência e guerra. Hoje testemunhamos uma escalada global de violência contra a mulher – não só em ficção, mas de fato.
Tudo indica que estamos prestes a regredir aos dogmas antifemininos que regem o fundamentalismo cristão e islâmico. No cinema e na literatura cada vez mais se pode ver a violência contra a mulher que se apresenta sob a forma de assassinatos requintados até estupros e cita a autora: “... fazem a violência literária de A Megera Indomada e Don Juan parecerem insignificantes.” A pornografia desenfreada, esse mercado multibilionário nos livros, revistas, tirinhas, cinema, propagandas, televisão a cabo, que invadem nossas casas “afirmando que o prazer sexual reside na violência, no espancamento, em escravidão, tortura, mutilação, degradação e humilhação do sexo feminino.”
Pode ser essa violência toda contra a mulher nos veículos de comunicação uma estratégia de manter o domínio do sistema androcrático em nossa sociedade através do fomento do medo, da dor e demonstração de poder através da força? Que a perpetuação desses exemplos cruéis e realísticos através da arte possam servir como estímulo para que homens passem a agir dessa maneira com suas namoradas, esposas e filhas?
A violência contra a mulher sempre pode ser constatada ao longo de nossa história, como exemplo, a inquisição, que perseguia, sobretudo, as mulheres que acabavam sendo vítimas das fogueiras acusadas de “bruxaria”. Porém no século XIX, com o advento do movimento feminista houve um aumento da violência contra as mulheres: espancamentos, fraturas, corpo incendiado e outros horrores. Como diz Riane:
“Vista da perspectiva da Teoria da Transformação Cultural, não é difícil de perceber a função sistêmica da violência massiva e brutal contra as mulheres. Se a androcracia quiser se manter, as mulheres precisam ser reprimidas custe o que custar. E se esta violência – e o avivamento de incitações à violência, calúnias religiosas contra as mulheres, e a equiparação de prazer sexual a matar, estuprar e torturar mulheres – está crescendo no mundo todo, é porque nunca antes a dominância masculina foi tão vigorosamente desafiada através de um movimento tão sinérgico de mulheres lutando pela libertação da humanidade.”
Eisler não discute a questão da função da arte, porém dá o caminho para uma reflexão. Todos os veículos ligados à arte se tornam obrigatoriamente aparelhos de divulgação de ideias, através do que se escreve, através das imagens concebidas, seja no cinema, teatro, fotografia, pintura, que podem servir para manipulação das massas, para a aceitação progressiva de falsos conceitos que servem e alimentam um sistema. É a arte aliada à política servindo às ideologias convenientes. A arte como instrumento massificador que em doses homeopáticas vai construindo uma forma de pensar linear de aceitação sem reflexão de tais ideologias que servem ao poder vigente. Quando se vê na arte tanta violência ilustrada contra a mulher nada mais é do que a utilização de todos os meios para o constante inculcar e perpetuar da dominação androcrática em nossa sociedade, adentrando nos lares, escolas, matando o questionamento de que se isso realmente pode ser da natureza humana, conceito reforçado pelos preceitos religiosos, se pode ser modificado, se pode existir uma sociedade mais justa para todos. Encoberto pelo som altíssimo que atordoa, pelas belas imagens ou palavras, por conceitos falsos pré concebidos o ser humano aceita absurdos como verdades, tira da ficção os exemplos que começam a fazer parte da sua realidade de uma forma inconsciente, e sem perceber que passou por uma lavagem cerebral, atua em favor de um sistema falso e incoerente. É essa a função da chamada arte em nossos dias?
* Androcrático: vem do neologismo “androcracia”. Esta palavra deriva das raízes gregas andros, ou “homem”, e kratos, ou “governo”.
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Referência:
—"O Cálice e a Espada: Nosso passado, nosso futuro", de Riane Eisler. São Paulo, SP: Palas Athena Editora, 2008.
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