Para os amantes da leitura, coloco aqui, para apreciação, alguns trechos do interessante livro "A Idade Média e a Criação do Graal", inclusive sua Introdução. Boa leitura!
SÃO PAULO – SP
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11.5 – OSKAR ERNST BERNHARDT
SUMÁRIO
DADOS DO LIVRO IMPRESSO:
ISBN 978-85-366-3167-7
416 paginas
1ª edição - ano 2013
Copyright© Vito Marino
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DADOS DO LIVRO DIGITAL (eBOOK):
ISBN 978-85-674-4308-9
416 paginas
Copyright© Vito Marino
SÃO PAULO – SP
Grupo Editorial Scortecci
Scortecci Editora
1. Artur, Rei 2. Cavaleiros e
cavalaria
3. Cruzadas 4. Graal 5. Graal
- Lendas - História
6. Idade Média - História 7. Lendas
medievais
8. Literatura arturiana 9.
Literatura folclórica
I. Título.
Índices para catálogo sistemático:
1. Idade média e a criação do Graal : História
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VERSÃO IMPRESSA:
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Introdução
O tema “Graal” é o centro de inúmeras Obras literárias e alimenta uma gama de discussões e enigmas.
Junto com ele, unem-se as estórias arturianas medievais, desde sua popularização.
Por isso, conheceremos o Graal desde sua criação até as formas que foi adquirindo com o decorrer do tempo. Veremos o início de tudo sobre este assunto e as estórias que se converteram em “verdades”, compreendendo a elaboração do mito e seus desenvolvimentos que não chegamos a conhecer.
Mas o que seria o Graal?
Seria o “Cálice da Santa Ceia de Cristo” ou o “Santo Cálice de Valência”? Ou seria a “Pedra Verde” de Wolfram von Eschenbach que caiu do céu? Será que o Graal é um “Cálice Divino da Vida”, como afirmam certos doutrinadores? Ou será que é o “Sangue de Cristo”, conhecido como “Sangue Real”, presente nos descendentes de Maria Madalena?
Agora já podemos saber a verdade e desvendar o passado...
E o Graal tornou-se lenda. Mas a lenda do Graal não é um conto de fadas, e sim, retrata a visão e a mentalidade de uma época.
As Cruzadas, seus cavaleiros e suas façanhas foram uma importante fonte de inspiração literária na Idade Média, o que fez surgir vários mitos e lendas. Destacam-se aí os famosos templários.
Mas muitos acreditam que por trás da lenda exista um fundo de verdade. Descobriremos que sim, e também, que esta verdade é totalmente diversa daquilo que se tornou através dos escritores de Literatura de cada época.
Veremos, nas paginas que virão, que também escritores místicos tentaram construir uma história real da lenda antiga. Estes, criaram sua própria visão de realidade. Visão esta, que se tornou ainda mais fantástica do que a própria lenda! Esse ponto é uma das coisas mais interessantes e intrigantes que podemos observar de fora, percebendo o quanto o ser humano é criativo e místico.
No entanto, a realidade sobre o Graal continua lá onde sempre esteve: registrada na História. Quando esta realidade palpável é agora relembrada e analisada, muitas pessoas se escandalizam, pois não acreditam que a verdade descoberta através de sérias pesquisas, tenha sido assim como é apresentada, pois difere da “verdade” que elas próprias tinham ou construíram! Mas pesquisando a História e analisando-a, somos capazes de desmistificar mitos e trazer à tona a simples verdade dos fatos.
Tenho certeza de que esta Obra será útil a muitos pesquisadores interessados em enigmas do passado, pois eles poderão examinar serenamente a abrangência das descobertas aqui relatadas.
Após a leitura deste trabalho, o Graal não continuará mais sendo um enigma. O “quebra-cabeça” foi montado. A mensagem original do Graal foi descoberta. A História medieval francesa e a europeia de um modo geral, juntamente com a literatura medieval dos autores relacionados às estórias arturianas, nos deram uma biografia precisa do Graal. Uma biografia que iremos explorar, dando ao Leitor uma explanação completa, detalhada e sistemática de seu conteúdo e desenvolvimento até o século XXI.
Iremos fundo no tema Graal, um tema que fascina as pessoas com seu encantamento próprio cheio de mistério e perguntas. Desvendaremos o que até agora era tratado como lenda, enigma, misticismo e até filosofia de vida e religião. Com isso, o Graal ficará agora definitivamente destrinchado e seu Criador eternizado.
Vito Marino
Outono de 2013, São Paulo, Brasil.
PRIMEIRA PARTE
A IDADE MÉDIA E A
NOVA INSPIRAÇÃO OCIDENTAL
Capítulo 1
As Cruzadas Cristãs e seus Efeitos
O mundo estava em constante transformação. E uma das maiores transformações foi o fim do Reino do Milênio, marcado pelas guerras das Cruzadas europeias na Terra Santa e o advento de figuras messiânicas.
O Reino do Milênio significava o primeiro milênio do “Reino da Santa Igreja Católica Romana”, a “Representante de Deus na Terra”.
O século XI que se inaugurava à frente de todos, parecia ser um século de grandes realizações e concretizações.
O século XI se tornaria “a Grande Era da Peregrinação da Cristandade”. E tal fato ganhou mais força pela interpretação coletiva de parte das Escrituras cristãs (Bíblia), que “apontava” que o ano 1000 seria um ano de grandes transformações apocalípticas.
Era “a virada do Milênio”, do “Reino do Milênio”, e imaginava-se que seria a época do advento de Jesus Cristo para julgar o mundo, conforme anunciava o capítulo 20 do Apocalipse bíblico. Por toda a Europa, clero e leigos mostravam-se confiantes nestas previsões e boatos, e uma data foi “marcada” para a Segunda Vinda de Jesus: 31 de dezembro de 999. Cartas e cumprimentos diários citavam o iminente Fim do Mundo. Muitos venderam seus bens e até deixaram o matrimônio de lado por conta disso, outros, fugiram para lugares montanhosos em busca de segurança contra catástrofes vindouras. Peregrinos espalhavam a notícia e apontavam o “pecado” humano. Portanto, fazia mais do que sentido uma jornada à Terra Santa, o local santo da Cristandade, o berço do Filho de Deus, em busca de penitência. As pessoas estavam convictas de que tal peregrinação seria bem recebida e bem interpretada por seu Senhor. A fé pedia sacrifícios.
Do mesmo modo que a Caaba em Meca, a obrigação de uma peregrinação a Jerusalém, seria, aos olhos de Deus, um alvo a ser atingido, de tal modo que esta ideia era incutida com firmeza na mente de todo cristão de toda e qualquer posição da sociedade europeia. Segundo a Igreja, a peregrinação teria a vantagem de proporcionar a remoção de todo e qualquer pecado do fiel. Então, começaram a ocorrer peregrinações em massa a Jerusalém e outros lugares.
No entanto, a primeira peregrinação distinta registrada, que se tem notícia, havia acontecido no século IX. Foi realizada por um nobre da Bretanha chamado Frotmond, que havia assassinado seu irmão mais velho e seu tio, e onde o remorso não o abandonava mais. Frotmond se apresentou diante do monarca Lothaire da Bretanha, vestindo um hábito de penitente e confessou seus crimes, sendo preso em seguida. O rei e os bispos, então, determinaram que o lorde bretão expiasse sua culpa partindo para o Oriente em visita a todos os locais sagrados da Cristandade. Ele deveria levar junto seus servos e seus parceiros nos crimes. E assim foi.
Após visitar todos os locais santos da Palestina, Frotmond atravessou o deserto árabe, cenário das perambulações de Israel, e rumou para o Egito. Depois, seguiu pela África até Cartago, onde, juntamente com seus acompanhantes, pegou um navio para Roma. Ele queria consultar o papa. O papa, ao ser consultado, disse que sua penitência não estava completa e determinou que Frotmond fizesse uma segunda peregrinação para a remissão completa dos seus pecados, seguindo novamente para a Terra Santa. E foi o que ele fez. Peregrinou até o Monte Sinai onde morou por tres anos, e depois, seguiu para a Armênia visitando a suposta montanha onde a arca de Noé teria atracado(1). Após isso, retornou à sua terra natal e foi recebido como um homem santo. Frotmond passou o resto de seus dias no convento Redon. Quando morreu, foi profundamente lamentado pelos irmãos monásticos.
Este caso e outros depois comprovaram a eficácia e o mérito da peregrinação à Terra Santa.
Carlos Magno (747-814) durante seu governo, havia estabelecido relações com o califa Haroun al-Rachid, conseguindo um acordo que protegia os peregrinos europeus em viagem à Palestina, pois até então eles sofriam perseguições dos muçulmanos. Com isso, o número de peregrinos foi crescendo, ao ponto, por exemplo, dos monges de Cluny na Borgonha (França) colocarem em seu programa de reformas, as peregrinações. Para facilitar a viagem e o bem-estar dos peregrinos, os monges organizaram rotas turísticas e construíram hospedarias. Com estas mudanças, as peregrinações passaram a ser mais seguras, levando ao surgimento até de mulheres peregrinas.
O imperador Carlos Magno era rei dos francos, rei dos lombardos e rei dos germânicos, e foi coroado imperador do “Sacro Império Romano-Germânico” pelo papa Leão III (750-816) em Roma, em 25 de dezembro do ano 800, promovendo assim a unificação de todo um império através de um poder central. Carlos Magno se tornou o protetor do papado, e para promover a unificação de seu império, ele criou “os representantes itinerantes do soberano”, chamados de “Enviados do Senhor” (missi dominici), que peregrinaram em missão pelo império.
Para o cristão europeu, havia muitas obrigações para com o seu Deus Javé(2). Dentre elas, destacava-se a penitência. Por isso, a peregrinação a locais sagrados da Cristandade, tornou-se uma das formas de penitência mais populares. Dentre estes locais, destacavam-se: Chartres e Saint Michel na França, Compostela na Espanha, Roma e especialmente Jerusalém na Palestina.
Na Terra Santa, além de Jerusalém como lugar santo, também se destacavam Belém, Nazaré, o rio Jordão, entre outros.
Mas era no sepulcro de Jesus Cristo que o peregrino fiel ficava mais próximo de seu Deus, pois foi ali que Jesus havia morrido e ressuscitado segundo sua teologia.
As peregrinações também colocavam os penitentes em contato com as relíquias sagradas do cristianismo, que possuíam o poder “santificador”. Isso era uma grande vantagem para a Igreja Católica, pois favorecia a religião. As relíquias trouxeram poder e prestígio através dos séculos.
A expansão árabe pelo mundo havia chegado a um ponto de mudanças. Como veremos, fatos desencadeados pelos muçulmanos, somados às ambições da Cristandade, catalisaram o desenrolar da História na Terra Santa a partir do século XI.
No começo dos anos 800, havia ocorrido a ocupação muçulmana em Creta, em Malta, no sul da Itália e uma incursão em Roma, situando o apogeu do império árabe em 809. Nessa época faleceu o califa al-Rachid, lembrado como “o Príncipe das Mil e Uma Noites”. Haviam sido séculos de expansão árabe pelo mundo. Os árabes foram dominando todo o Mediterrâneo. Por onde passou, a cultura árabe deixou características próprias e marcantes.
As Cruzadas medievais só viriam a acontecer quase trezentos anos depois de Carlos Magno, e foram de muita importância no âmbito social, cultural, econômico e político para a Europa.
A principal meta dos peregrinos europeus até antes das Cruzadas, havia sido visitar os lugares santos de Jerusalém. Isso se manteve assim, até que diversas perseguições muçulmanas aos cristãos ocorreram no Egito e na Palestina em 1004, pelo califa fatímida Al-Hakim (985-1021), culminando com a destruição da Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém em 1009. Agora, um dos mais caros valores da espiritualidade medieval cristã estava condenado. A partir daí, milhares de igrejas cristãs foram destruídas (1014).
Nascido no Cairo, Al-Hakim tinha seu nome de nascimento como “Abu Ali Mansur”, e era filho do califa Al-Aziz. Após a morte de seu irmão mais velho Muhammad em 993, Abu Ali foi proclamado herdeiro do trono e sucedeu o pai em 996. No mesmo ano da sua posse, ele mudou seu nome para Al-Hakim bi-Amr Allah, que significa “aquele que governa pela ordem de Deus”. No entanto, até o ano 1000, foi o vizir Barjawan quem governou o reino de Al-Hakim.
Em 1005, Al-Hakim fundou a famosa “Casa da Sabedoria” com o objetivo de difundir o islã ismaelita(3) no mundo muçulmano.
Mas, então, Al-Hakim se proclamou Deus e nessa qualidade revogou o Alcorão. Ele iniciou um Movimento filosófico islâmico novo, influenciado pela filosofia grega, a gnose e o cristianismo. O novo Movimento islâmico divulgava que Al-Hakim era a última, de uma série de encarnações terrenas de Deus. Todos os ingredientes para outro forte messianismo tinham sido lançados. Agora havia o messianismo cristão e o messianismo árabe em franca rota de colisão.
Mas com a chegada do ano 1000 e sem que nada houvesse acontecido conforme as “previsões”, a data do Juízo Final foi “transferida” para o milênio seguinte, trazendo um “esfriamento” passageiro da fé.
Em 1054, Bizâncio conquistou o controle marítimo do Mediterrâneo, levando os peregrinos a fazerem escala em Constantinopla, a capital romana oriental. Com isso, em pouco tempo Constantinopla se tornou um importante centro de venda de relíquias e bens culturais.
Mas a Cristandade estava ameaçada. As ofensivas árabes não cessaram. Em 1056 os muçulmanos proibiram os peregrinos de entrarem em Jerusalém. Oito anos depois, centenas deles foram assassinados pouco antes de chegarem à Cidade Santa. Entre 1071 e 1080, os turcos seljúcidas conquistaram a Ásia Menor, a Síria e a Palestina, e o imperador Bizâncio pediu ajuda ao Ocidente. Com tais afrontas, os europeus não hesitaram em organizar, em poucos anos, expedições militares para resgatar a Terra Santa das mãos dos “infiéis”. Foram estas expedições militares convocadas pelos papas, que receberam o nome de “Cruzadas”. A primeira delas se organizou em 1096, e seu êxito se deveu principalmente à desunião do mundo muçulmano. O ataque e a destruição da Igreja do Santo Sepulcro não ficariam impunes e se tornou um dos pretestos para a Primeira Cruzada. A partir de então, ocorreriam um total de Oito Cruzadas à Terra Santa. A última aconteceria em 1270 (também houve lutas para a libertação da Espanha e de Portugal contra o governo árabe).
O papa Gregório VII (1020-1085), que dirigiu a Igreja Católica Romana de 1073 a 1085, surgiu como um reformador da Igreja. Ele apontava que a Igreja defendia a vontade de Deus no mundo, e que sua própria posição era a de “Representante da Vontade de Deus na Terra”, e por isso, ele estava acima de qualquer rei e governo. Por tal supremacia, Gregório VII afirmava ser incapaz de errar nas questões espirituais. No Sínodo da Quaresma de 1075, ele alegou que “o papa tem a autoridade para depor imperadores”. E a verdade para ele era uma só: se o próprio Jesus Cristo conferiu a Pedro “o poder do céu” (Mateus 16:17,18,19), a Igreja e o papa como herdeiros de Pedro, tinham igual supremacia.
O maior opositor deste papa era o imperador alemão Henrique IV (1050-1106).
Com essa poderosa herança papal, os reis e imperadores europeus seguintes buscaram modos para mudar essa situação. E tal mudança seria conseguida poucos séculos depois, com um enfraquecimento do poder católico.
Em novembro de 1095, o papa francês de Champanha, Urbano II (1042-1099), convocou em Clermont-Ferrand (Auvérnia) os senhores feudais franceses e normandos para um Concílio, a fim de lançá-los na Primeira Cruzada para a Terra Santa. Ele fez ali seu famoso apelo incitando nobres e vassalos a marcharem juntos, como “soldados de Cristo”, para libertarem Jerusalém das Trevas.
Com a Cruzada, estimulava-se também a paz entre cristãos e a união “sagrada” contra infiéis(4). Foi então que o papa clamou para a assembleia reunida sua famosa frase:
“―Deus o Quer!”
Por tal empenho em prol de Deus, Urbano II absolveu os envolvidos de todos os pecados já cometidos e os abençoou pela empreitada na Terra Santa de Deus. Começava assim, a guerra-santa cristã do Deus Javé.
A Cruzada vinha em boa hora para o papado e serviria para por fim a conflitos cristãos em solo europeu.
Após dois anos de caminhada até a Terra Santa, o nobre Godofredo de Bulhões (...)
CONTINUA...
2 Como o Deus cristão possui um nome próprio desde a sua origem na religião judaica, usamos nesta Obra o seu nome, apesar de sua utilização não ser mais tão comum atualmente para algumas pessoas, devido ao seu desuso estimulado pela Igreja Católica nos últimos séculos.
3 À semelhança dos outros muçulmanos, os ismaelitas acreditam no Deus Javé (Alá) e no profeta Maomé como seu Mensageiro Divino. Partilham com os outros xiitas a crença de que Ali (um genro de Maomé) foi nomeado por Maomé como líder da comunidade muçulmana, devido à sua capacidade para interpretar a Mensagem de Deus, dom que teria sido transmitido aos seus descendentes. Contudo, ao contrário dos outros xiitas, os ismaelitas seguem um Imã vivo (também “Imane”), o qual é denominado “Hazir Imã”. Imã é tradicionalmente um guia espiritual muçulmano (hoje em dia é o oficiante das orações diárias de uma mesquita). O pensamento ismaelita apresenta igualmente uma visão cíclica do mundo, onde a História se desenrolaria ao longo de sete Eras. Cada uma destas Eras seria iniciada por um profeta que traria consigo uma “Escritura Sagrada”. Cada profeta também viria acompanhado por um “companheiro silencioso”, que revelaria os aspectos esotéricos da Escritura. Os seis primeiros ciclos estiveram associados aos profetas Adão, Noé, Abraão, Moisés, Jesus e Maomé. O suposto companheiro silencioso de Maomé teria sido Ismael, que acredita-se, regressará no futuro para ser o profeta do sétimo ciclo. Este sétimo ciclo traria consigo o “Fim do Mundo”. Essa crença defende que até que o Fim do Mundo chegue, o “conhecimento oculto” deve ser preservado em segredo e revelado apenas aos iniciados.
4 No entanto, durante as Cruzadas também aconteceram discórdias e divergências como realidade entre os próprios cruzados.
SEGUNDA PARTE
A CRIAÇÃO DO GRAAL
Capítulo 6
A Invenção do Graal
“A Cavalaria foi o evento mais notável da história europeia entre a cristianização e os tempos modernos. O conjunto de ideais e práticas próprias de uma ordem de pessoas que nela ingressavam, mediante educação e ritos determinados, acabou constituindo-se em tema de uma fase da Literatura. O acesso ao status de cavaleiro exigia uma formação iniciada desde a infância. O feudalismo forneceu à Cavalaria seus castelos, feudos, armaduras e cerimônias de investidura, que consolidavam os laços entre vassalos e suseranos. A instituição não apareceu de repente, nem com todas as características de que se revestiria já na época dos trovadores. Com exceção do estatuto feudal que se forjou no bojo da Alta Idade Média, todos os demais aparatos que a distinguiam – os brasões de nobreza, as ordens de Cavalaria e as cerimônias de sagração – assumiram sua forma definitiva no século XI.”
A. R. Schmidt Patier
“Graal”.
O Graal, o Gral, o Santo Graal, o Cálice Sagrado, o Cálice Milagroso, o Cálice do Graal, a lenda do Santo Graal, a Bandeja Graal, o Santo Vaso, o Vaso Miraculoso, o Vaso da Vida, a Vasilha Milagrosa, o Cálice da Santa Ceia, a Taça da última Ceia, e por aí vai. O que são todas estas expressões conhecidas como Graal?
Em primeiro lugar, devemos saber que “Graal” é uma palavra derivada do latim tardio “gradalis”, que por sua vez deriva do latim clássico “crater”. Gradalis significa “bandeja”, e designava uma bandeja de servir, espécie de escudela ou tigela, utilizada nas refeições dos aristocratas europeus.
Mas gradalis também possui outros sentidos, como: vaso, recipiente com boca larga, balde, botija, grande prato fundo, e posteriormente “taça” e “cálice”, que se transformaram nos significados mais famosos.
A palavra “Graal” também assumiria, após Chrétien, diversas variantes francesas, oriundas dos diversos dialetos franceses antigos, do norte e do sul da França (o próprio francês de Chrétien era o dialeto de Champanha conhecido como “oïl”). Estas variantes são: griau, gruau, gré, guerlaud, grélot, greil, grazal, gréal.
O latim era a língua falada e escrita oficialmente no Império Romano, e posteriormente adotada pela Igreja Católica. Mas a partir dos séculos XII e XIII o latim começou a entrar em decadência, cedendo lugar às línguas europeias modernas.
Foi aí que Chrétien começou a escrever em francês (dialeto de Champanha) e resolveu manter no seu Conto do Graal a palavra em latim que o designa.
O “tema Graal” é diferente de outros temas polêmicos, como por exemplo, “a religião cristã”, que não possui os escritos originais que se tornaram a “Bíblia”, a não ser cópias de tradições orais, cópias com adulterações e transcrições de cópias de outras cópias, que assim “tentam” corroborar e legitimar sua fé e Verdade. No caso do tema “Graal”, temos a felicidade e a maravilha de possuir “a Obra legítima”, escrita originalmente pelo seu criador único, e acessível a todos que queiram, ou seja, o “Perceval ou O Romance do Graal”, do poeta Chrétien de Troyes, cujo resumo de vida pudemos acompanhar no capítulo anterior.
Como já foi mencionado, ele, Chrétien de Troyes, foi o criador da estória do Graal e do termo “Graal” e o responsável por sua reputação. Ele escreveu seu poema do Graal, que acabou dando origem a toda uma “Saga” de inimagináveis diversidades literárias e opções de ficção e fantasia de autores mais tardios sobre o tema. Ficções inclusive, que se tornaram em certos círculos “Verdade Absoluta” e até doutrina. Esta Saga que se estende até os dias de hoje pelo mundo, pode causar espanto ao observador sereno, mas também pode gerar entretenimento e entusiasmo àquele Leitor pesquisador.
Como nosso prezado Leitor poderá observar nas linhas que se seguem, o autor de “Perceval, ou O Romance do Graal” designa de “Graal” uma bandeja-taça contendo uma hóstia, aquela já tão conhecida nas missas religiosas das igrejas, e que imita a Eucaristia (última Ceia de Jesus Cristo com seus discípulos).
É também no Romance do Graal que aparecerá, pela primeira vez, o curioso personagem “Perceval”, conhecido como o “tolo puro” ou o “tolo ingênuo”. Perceval é o mais novo personagem arturiano criado pelo poeta francês e incluso em seu conto-romance do Graal. Este novo personagem, surge para incrementar a nova estória do mundo arturiano.
Outra coisa que o Leitor poderá observar se ler o romance do Graal inteiro no original traduzido, são algumas poucas passagens que rimam, obedecendo a forma de poema, e que puderam transparecer no português também, apesar da tradução, e que no original francês é sempre presente. A forma poética e romantica de um poema, assim como de uma prosa, logicamente desaparecerá quase completamente em uma tradução. Pois é o próprio idioma original que dá rima, ritmo e vida, segundo a vontade do poeta em manejar as palavras em sua Obra. Na tradução, as palavras não se encontram mais entrelaçadas poeticamente e o seu som se modifica naturalmente, ficando somente a estória pura.
Alguns trechos dessa estória pura e legítima transcreveremos aqui, quando necessário, para que o Leitor compreenda melhor o Graal e o novo personagem Perceval. Assim, o Leitor verá como o conceito “Graal” foi fundado e posteriormente desenvolvido pelos escritores pós-Chrétien. O Leitor verá a nova palavra “graal” aparecer, pois até então, não era usual ainda, sendo introduzida pelo autor em seu romance, e a partir daí usada na Literatura mundial até hoje. Foi o uso simples e natural de uma palavra construída e derivada de outro idioma, numa Obra literária nacional. Chrétien usou a palavra “graal construída do latim” para designar uma “bandeja-taça”, criando um ar de mistério ao redor da narração, para enriquecê-la, ou em outras palavras, para incrementá-la. Dar um nome a um objeto de destaque em um texto faz com que tal objeto seja glamourizado. Simplesmente isso.
Seguiremos agora transcrevendo algumas partes do Conto, juntamente com a nossa própria narração resumida do poema e nossos comentários e atenções, para assim termos uma ideia do conteúdo do poema e da visão de Chrétien sobre o assunto Graal, assunto esse, que se tornaria a estória-Mãe sobre Graal no mundo, como veremos adiante.
Nas transcrições breves do romance, algumas expressões arcaicas de época aparecerão naturalmente.
Nas primeiras linhas do livro, antes de iniciar seu “Conto do Graal”, Chrétien de Troyes fez uma alocução breve, mas simpática, ao seu patrocinador, o Conde de Flandres, Felipe de Alsácia, falando do quanto ele era bom, justo e cheio de virtudes. Em seguida, ele seguiu escrevendo seu poema-estória, que começa assim:
“Foi no tempo em que as árvores florescem, as folhas, matas e prados enverdecem, os pássaros cantam docemente seu latim pela manhã e todos os entes inflamam-se de júbilo. Então, na Gasta Floresta solitária, o filho da viúva levantou-se. Vivamente selou seu cavalo de caça, pegou tres dardos e saiu do solar materno. Dizia consigo mesmo que iria ver os gradadores que estavam semeando a aveia com doze bois e seis grades.
Penetra assim na floresta, e prontamente seu coração rejubila com o suave tempo que se expande e ao ouvir aquele canto de tantos pássaros em regozijo. Todas essas cousas lhe são doces. Na leveza do tempo sereno, liberta do freio o cavalo e deixa-o ir pastando pela relva fresca e verdejante.
Diverte-se em lançar seus dardos ao redor: para a frente, para trás, à direita, à esquerda, para cima, para baixo. E eis que ouvem chegarem cinco cavaleiros armados, com todas armas aparelhados. As armas dos que vinham faziam grande ruído, pois amiúde esbarravam nos ramos dos carvalhos e das bétulas. Todas as lorigas então fremiam. Lanças chocavam-se com escudos. Soava a madeira, soava o ferro de escudos e lorigas.
O rapaz ouve, mas não vê os que chegam a bom passo. Espanta-se, dizendo consigo: ‘Por minh’alma, minha mãe e senhora diz a verdade quando afirma que os diabos são as mais feias cousas do mundo, e ensina que eu faça o sinal da cruz para me proteger deles. Mas tal não farei! Realmente, não me persignarei! Não; o mais forte escolherei. Vou atingi-lo com meu dardo. Nenhum dos outros chegará perto!’ ”
Mas quando consegue avistar os cavaleiros com seus elmos claros reluzentes, as lanças e os escudos, as lorigas faiscantes, o ouro, o azul e a prata, o rapaz se lembra das palavras de sua mãe:
“—Ah, senhor Deus, perdão! São anjos que vejo aqui! Em verdade, sim, pequei ao pensar que fossem diabos! Minha mãe não me enganava ao dizer que os anjos são as mais belas cousas que existem, exceto Deus, mais belo que todos. Mas este aqui, que posso ver bem, é tão magnífico que seus acompanhantes são dez vezes menos belos! Como disse minha mãe, homem deve acima de tudo adorar, orar e honrar a Deus. Vou adorar este aqui e todos os anjos empós(1) dele.”
E imediatamente o rapaz se penitencia recitando todas as orações ensinadas por sua mãe, até que o comandante dos cavaleiros o vê e dá ordens aos demais cavaleiros:
“Prontamente, deita por terra e recita de enfiada todas as orações que a mãe lhe ensinara. Então o senhor dos cavaleiros avista-o e diz aos companheiros:
—Parados! Ficai para trás! Esse rapaz caiu pelo medo que lhe causamos. Se fôssemos todos juntos até ele, ficaria tão apavorado que talvez morresse, e não poderia mais responder ao que desejo perguntar.”
O comandante galopa e se aproxima do rapaz saudando e tranquilizando:
“—Garoto, não tenhas medo!
—Pelo Salvador em que creio, não tenho medo! – diz o rapaz – Sois Deus?
—Claro que não!
—Então quem sois?
—Um cavaleiro.
—Cavaleiro? Não conheço ninguém assim chamado! Nunca vi um. Porém sois mais belo do que Deus. Gostaria de parecer convosco, assim todo brilhante e afeitado!”
A estória prossegue com o deslumbramento do jovem personagem identificado como sendo galês(2) e “filho da viúva”, ao se deparar com alguns cavaleiros na floresta que por ali passavam, pois tais, ele nunca havia visto antes. Estes, pedem informação para o jovem, que ao invés de dar pronta resposta, passa a fazer perguntas sobre perguntas, sobre tudo o que se descortinava diante dele: a lança, o escudo e a loriga daqueles homens.
Por último, o jovem fica sabendo que estes aparatos e a consagração de cavaleiro foram dados por um rei de nome Artur.
Após, o jovem dá a informação que os cavaleiros queriam e volta para casa decidido a ir encontrar o rei Artur, para que este o faça cavaleiro também.
Até então, sua mãe e os serviçais haviam mantido o jovem em ignorância sobre a existência da Cavalaria e de cavaleiros, pois temiam que o jovem ficasse tão deslumbrado que quisesse se tornar um, abandonando assim o solar materno e metendo-se em eventuais perigos. Mas as tentativas da mãe são em vão, porque o jovem a todo custo decide se tornar cavaleiro sem se importar com os medos maternos. Sua mãe assim agia por haver perdido o marido que também era um cavaleiro. Ela narra ao filho que:
“Jamais existiu cavaleiro de tão alto valor como vosso pai. E nenhum foi tão temido entre as ilhas do mar. Caro filho, podeis gabar-vos de não precisardes corar de sua linhagem nem da minha, pois sou nascida de cavaleiro, dos melhores desta região. Mas todos os melhores estão decaídos.”
E a mãe prossegue exaltando as qualidades do cavaleiro medieval:
“Em todos os lugares vemos desventura abater-se sobre os homens probos(3), mesmo aqueles que se mantêm em grande honra e bravura! Os maus, os covardes, os desonrados não caem, tão baixo estão! Mas os bons têm de ser abatidos! Vosso pai, se não sabeis, foi cruelmente ferido nas pernas durante um combate. Não teve mais forças para defender suas grandes terras, seu tesouro ganho por valentia. Tudo soçobrou, e foi triste pobreza.”
Através do personagem, Chrétien evidencia a perseguição dos nobres cavaleiros medievais:
“Quando morreu Uterpendragon, pai do bom rei Artur, os gentis-homens foram destruídos. Tomaram-lhes as terras. Toda a pobre gente fugiu como podia. Não sabendo aonde fugir, vosso pai fez-se conduzir em liteira para a Gasta Floresta, onde possuía este solar. Éreis então um bebê, ainda não desmamado, com apenas dois anos. Tínheis dois irmãos, dois belos jovens. Quando atingiram idade suficiente, a conselho do pai foram as cortes reais para ter armas e cavalos: o primogênito para a corte do rei de Escavalon, o outro para o rei Ban de Goneret. No mesmo dia os dois rapazes foram sagrados cavaleiros. Depois tomaram caminho para retornar ao solar e nos rever e trazer alegria a vosso pai e a mim. Mas ai, nunca chegaram. Foram ambos aniquilados. Em combate morreram ambos, o que me causou mui grande tristeza.”
E a mãe encerra sua narrativa buscando expressar ao filho todos os seus temores e tristezas e seu apego ao filho sobrevivente:
“Do luto pelos filhos morreu o pai, e desde sua morte tenho sofrido vida muito amarga. Éreis todo o meu reconforto e todo o meu bem, pois já não me restava nenhum dos meus. Deus nada mais deixou que me pudesse dar júbilo e alegria.”
O rapaz, no entanto, não dá muita atenção aos sofrimentos e preocupações de sua mãe. Porém diz:
“—Dai-me de comer. Não sei do que falais. Quanto a mim, de bom grado partirei para junto do rei que faz cavaleiros.”
Obviamente o rapaz não liga para a preocupada e cuidadosa mãe, e parte em busca de seu desejo de cavaleiro. Leva consigo, além de seu cavalo, um dardo e uma varinha para espevitar seu animal de montaria e alguns conselhos de vida e recomendações maternas, como ir a igreja ou ao mosteiro orar a Deus. Ao filho, que não sabia o que era igreja nem mosteiro, a mãe explica que é…
“...uma bela e santa casa cheia de relíquias e tesouros. Ali homem sacrifica o corpo de Jesus Cristo, o santo Profeta que os judeus tanto fizeram sofrer. Ele foi traído, julgado injustamente. Sofreu angústias mortais pelos homens e pelas mulheres (…).”
O filho então parte, levando as recomendações da mãe, mas quando se volta para vê-la pela última vez à distância, percebe que ela está caída como morta, próxima à ponte.
Sem se dar conta da gravidade da cena, ele…
“...fustiga com a varinha a garupa do cavalo e parte a galope (para impedir a si de retornar) em meio à grande floresta escura. Cavalga até declinar o dia. Dorme a noite no bosque até o alvorecer.”
Daí em diante, segue o jovem aventureiro pelos novos caminhos a sua frente. Conhece um mosteiro e por breves momentos uma damizela(4), mas segue cavalgando pela trilha que lhe informaram e que prosseguia até o rei Artur, em Cardwell.
Lá chegando, fica defronte ao rei, e aqueles de sua comitiva olham para o rapaz que…
“...mostra olhos límpidos e risonhos. Quem o vê considera-o louco, mas também belo e nobre.
Diz o rei:
—Amigo, desmontai. Um valete cuidará de vosso cavalo. Prometo: daqui a pouco sereis cavaleiro, para minha honra e vosso proveito.”
Enquanto ainda estava nas proximidades do rei Artur, o jovem presenciou uma ofensa inesquecível feita a uma jovem donzela, por parte de um dos cavaleiros preferidos do rei, de nome Kai, quando ela riu e fez um comentário endereçado ao jovem galês. Na verdade, Kai a esbofeteia, lançando-a ao chão.
Depois de não se mostrar muito educado perante o rei, o jovem galês sai para um combate do lado de fora do castelo do rei Artur, contra um inimigo do rei, por causa dos seus pertences de cavaleiro que haviam deixado o jovem rapaz deslumbrado e também por causa da vontade do rei. Este inimigo era conhecido como “o Cavaleiro Vermelho” da floresta de Quinqueroi.
Trava-se uma furiosa luta então, e o jovem galês mata o Cavaleiro Vermelho com seu dardo. Em seguida se apropria dos pertences que queria: a lança do morto, o escudo, o elmo, a armadura vermelha, a loriga, as perneiras, a coifa e a espada.
Como veremos, somente mais adiante aparecerá o nome do jovem galês no poema, num “autoreconhecimento” inesperado.
Continuando, o jovem galês parte dali em busca de outras paragens. Mas antes de partir, ele envia uma mensagem ao rei Artur e à donzela maltratada, através de um serviçal do próprio rei que o havia acompanhado até ali, de nome Ivonet. Ele diz ao serviçal para saudar o rei, de sua parte, e dizer a donzela que…
“...dentro de meu poder e salvo se eu morrer, vou preparar a esse grosseirão tal cartada que ela se terá por vingada.”
Então ambos se separaram e partiram.
Ivonet diante do rei Artur e dos cavaleiros relata o ocorrido, e este desperta em Sire Kai muita raiva pelas palavras ditas pelo galês. Artur, no entanto, lhe direciona seu pesar:
“—Ah, Kai, que mal me fizeste hoje! Zombaste desse rapaz a quem bastava aprender melhor o uso do escudo e da lança para dar certamente um bom cavaleiro. Porém afastastes de mim esse que hoje me prestou tão grande serviço. Agora ele vai encontrar, em má hora, alguém que para ganhar seu cavalo irá combatê-lo. Ele é ingênuo e sem modos, mas atrai invejosos. Não saberá se defender bem e em breve será vencido, morto ou ferido.
Assim o rei lamenta o galês. Mas que fazer em tal remorso? Só lhe resta calar.”
[negrito nosso]
Enquanto isso, o rapaz galopou pela floresta até chegar a uma planície onde segue atravessando uma pradaria até um largo e profundo rio. Ali perto, numa colina, avistou um castelo aparentando ser muito rico, formoso e sólido:
“O rapaz cavalga rumo à ponte. Encontra ali um homem probo vestido com roupa púrpura, que perambulava esperando-o. Para manter a atitude, segurava uma varinha. Perto dele, dois valetes que não portavam manto.
O rapaz, que bem aprendera o que lhe haviam ensinado, saúda-o e diz:
—Sire, assim ensinou minha mãe.
—Deus te abençoe, caro irmão! – diz o homem probo, que o reconheceu ingênuo e tolo. – Dize-me: de onde vens?
—De onde? Da corte do rei Artur.
—Que fazias lá?
—O rei me tornou cavaleiro, Deus lhe dê boa aventura!
—Cavaleiro? Não pensei que nestes tempos ele cuidasse de Cavalaria, mas que tivesse outra cousa a fazer além de sagrar um cavaleiro. (…)”
[negrito nosso]
Terminando o diálogo, o jovem apeia e decide se hospedar naquele lugar. Antes porém, o chamado “homem probo” toma o jovem como aluno e lhe ensina o uso das armas, lança e escudo, visto que o jovem só sabia manusear dardos. Ele também aprende, através da observação do mestre probo, como se portar em cima de um ginete.
Admirado com a habilidade do mestre, o jovem diz:
“Homem pode sempre aprender o que quer, desde que se empenhe. Todo ofício exige ânimo e esforço. Não há vergonha em não saber fazer o que não aprendeu nem viu algum outro praticar.
O galês monta por sua vez, prontamente portando lança e escudo com tanta destreza que parecia ter passado seus dias em guerras e torneios. Um verdadeiro frequentador de batalhas e aventuras! A cousa estava em sua natureza. Quando natureza e coração se juntam, nada mais é difícil.”
Após animado diálogo…
“...o anfitrião fala então:
—Vamos para o castelo! Sereis meu hóspede honrado.
Ambos partem lado a lado.”
Nisso, o rapaz pergunta ao anfitrião seu nome. Este lhe responde:
—“Mui caro amigo, meu nome é Gornemant de Gort.”
[negrito nosso]
Após boa refeição, Gornemant convida o rapaz a ficar mais tempo como seu hóspede, no que ele responde:
“—Sire, não sei se estou perto ou longe do solar de minha mãe, mas suplico a Deus que me conduza para junto dela, se a puder ver de novo, pois a divisei desfalecida ao pé da ponte quando a deixei. Não sei se ainda vive ou morreu. Porém sei bem que assim tombou pela dor de minha partida. Enquanto sentir essa inquietude, não poderei fazer longa permanência onde quer que seja. Partirei amanhã, ao despontar o dia.”
Logo de manhãzinha o rapaz levanta e se veste e…
“...o senhor curva-se e lhe calça a espora direita. Pois tal era o costume: quem fazia um cavaleiro devia calçar-lhe a espora direita. Chegam valetes trazendo as peças de armadura, afanando-se à porfia para armar o jovem. Mas é o senhor que lhe cinge a espada. Beija-o e diz:
—Com esta espada que ora entrego, confiro-vos a Ordem mais alta que Deus criou no mundo. É a Ordem de Cavalaria(5), que não admite vilania.
[negrito nosso]”
E o rapaz é advertido pelo senhor sobre as condutas de um cavaleiro:
“Caro irmão, se tiverdes de combater lembrai que, quando vosso adversário vencido implorar mercê, deveis ser misericordioso e não o matar. Não faleis mui facilmente. Quem fala demasiado pronuncia palavras que se transformam em loucura. Quem fala demais faz pecado, diz o sábio. Peço também: se acontecer que encontreis em desgraça, por falta de socorro, homem ou mulher, órfão ou dama, prestai socorro, se possível. Agireis bem. E finalmente eis algo que não deve ser esquecido: ide amiúde ao mosteiro orar ao Criador de todas as cousas, que Ele tenha mercê de vossa alma e que neste mundo terreno vos guarde como seu cristão.
E o galês responde:
—Abençoem-vos todos os apóstolos de Roma, caro Sire que me ensinais como minha mãe.
(…) O senhor faz sobre ele o sinal da cruz, dizendo ainda:
—Pois que te agrada partir sem esperar, adeus!
O novo cavaleiro deixa seu anfitrião.”
[negrito nosso]
O cavaleiro segue adiante com seu cavalo, ansioso por reencontrar a mãe. Espera reencontrá-la viva e com boa saúde. Mas no caminho se depara com uma região desolada próxima ao mar. Perto dali ele avista um castelo que lhe chama a atenção. Se dirige para lá para ver se consegue abrigo para a noite.
O lugar está em miséria, a cidade quase morta, é uma terra desolada.
As pessoas estão inquietas, e surge de repente uma damizela de grande beleza, graciosidade e elegância:
“Tão logo a vê, o cavaleiro saúda e ela retribui; (…) A damizela toma-o gentilmente pela mão e diz:
—Caro Sire, vosso pouso não será hoje o que conviria a um homem probo. Se ora vos contasse a que estamos reduzidos, poderíeis crer em maleza e me acusar de avareza para vos fazer partir. Porém vinde, suplico. Aceitai nossa hospitalidade como a podemos oferecer, e que Deus vos conceda um amanhã melhor!”
O jovem cavaleiro é conduzido pela damizela, chamada Brancaflor, a uma sala do palácio muito bonita e ampla, onde estão postados pequenos grupos de outros cavaleiros que ali permanecem silenciosos, com o olhar fixo no jovem Sire ao lado de sua senhora. Este, …
“...não diz palavra. Se ele nada diz é que recorda com exatidão o conselho do homem probo.
—Grande Deus – perguntam entre si –, ele é realmente mudo? Seria uma pena, pois jamais nasceu de mulher um cavaleiro tão bem feito. Como tem bela presença, ali, junto da senhora! Como ela está formosa ao seu lado! Se apenas ambos resolvessem não continuar assim calados! Em verdade são tão belos que Deus os parece ter feito um para o outro, tanto se combinam!
Assim os cavaleiros conversavam entre si. (…).”
O rapaz fica sabendo que Brancaflor é sobrinha de Gornemant de Gort, seu anterior anfitrião e mestre, que é elogiado ali como sendo nobre, rico e poderoso, além de bondoso.
Enfim se alimentam e se retiram, indo dormir…
A noite será de surpresas, visto que a linda damizela não consegue dormir, desejando procurar o rapaz e lhe confiar seu sofrimento. Assim faz, e de um impulso entra nos aposentos dele, permanecendo ajoelhada e chorando à beira de seu leito. Ele acorda, e, vendo-a naquele estado próxima dele, abraça-a afetuosamente e lhe pergunta:
“—Bela, o que desejais? Por que viestes?
—Piedade, Sire cavaleiro! Por Deus e por seu Filho, suplico que não me julgueis mais vil porque vim tão pouco vestida, como vedes. Na loucura não pensei nisso um único instante. Não consigo mais suportar que não haja um só dia sem sofrimento. Tal é minha vida.”
Ela relata que dos 310 cavaleiros que guardavam o castelo anteriormente, restavam apenas 50. Isso se devia ao fato de os outros terem sido aprisionados por um certo “senescal(6)” de nome Anguingueron que serve Clamadeu das Ilhas. Foram, na verdade, sitiados e obrigados a se manterem somente com os víveres que ainda possuíam. Diante dessa circunstância, amanhã se renderiam aos inimigos, se não obtivessem ajuda. A damizela, por isso, se tornará escrava de Clamadeu. Mas em vez disso, ela preferia morrer:
“Vou me matar. Ao vencedor não deixarei mais que meu cadáver. Não me importa o que acontecerá! Clamadeu que me quer só me terá sem alma e sem vida. Guardei comigo em um escrínio(7) um punhal de lâmina fina. Bem o saberei usar! Eis o que tinha a contar. Volto ao meu quarto e vos deixo repousar.
O jovem cavaleiro poderá em breve dar prova de sua valentia, caso queira.”
E continua a narração com o jovem consolando a damizela com palavras meigas e beijos, sem deixá-la mais partir de seu leito até o alvorecer.
Quando a damizela encontra novamente o jovem, agora “seu cavaleiro”, este lhe diz que irá procurar o inimigo e enfrentá-lo. Diz que se vencê-lo e matá-lo, a única recompensa que deseja é o amor da damizela. Mas esta, preocupada com o perigo que ele irá correr, discorda. O jovem, no entanto, se veste e se põe a caminho. Todos e todas o seguem em cortejo e chorando até a porta:
“Quando o veem fora das muralhas, bradam a uma só voz:
—Caro Sire, que a verdadeira Cruz(8) onde Deus permitiu os sofrimentos de seu Filho vos preserve hoje de morte e prisão! Que Ele vos conduza são e salvo ao lugar que desejais!
Assim oram no castelo (…).
[negrito nosso]”
O jovem e bravo cavaleiro segue adiante e encontra o inimigo, mas após vários diálogos infrutíferos, lança com coragem seu cavalo ao encontro do líder Anguingueron para a luta. Lanças em mira, cólera a flor da pele e cavalos em velocidade, ambos os cavaleiros correndo se embatem e um cai por terra. É o inimigo. Muito rápido o jovem salta de seu cavalo e continua a luta com espada em punho. Longa e furiosa batalha se trava, até que o inimigo pede piedade quando se vê derrotado.
Nisso, o vencedor hesita, recordando os conselhos do homem probo de ser misericordioso e não matar quem se arrepende e pede piedade.
Nesse ponto do poema, os diálogos giram em torno de várias exigências por parte do jovem vencedor ao vencido, mas que são rejeitadas.
Mas finalmente o vencido aceita a proposta a seguir:
“Irás então para a prisão do rei Artur. Saudarás o rei e lhe dirás de minha parte que mande procurarem na corte a donzela que o senescal Kai esbofeteou porque riu ao me ver. Eis a quem te renderás. Dize-lhe que peço a Deus não morrer antes de a ter vingado.”
Anguingueron promete-lhe que agirá segundo esta ordem, partindo dali com seu estandarte e cerco. Todos se vão e o cavaleiro vencedor retorna ao castelo. Lá chegando, todos vão em júbilo ao seu encontro, e após descê-lo do cavalo, o poupam de carregar as armas. A jovem donzela também jubilante trata de levá-lo aos seus aposentos para que tenha conforto e repouso. Carícias e beijos também fazem parte do júbilo e nada mais lhes apraz do que isso.
“Entrementes, Sire Clamadeu das Ilhas julga-se em dia de glória. Acorre, acreditando já ver o castelo rendido à sua mercê e a damizela em seu poder.”
Mas Sire Clamadeu ficou sabendo que seu bravo senescal se rendeu e rumou para a prisão do rei Artur. Fica fora de si com a notícia e procura outra solução para conquistar o castelo antes sitiado.
Depois de ouvir vários conselhos, vai ao encontro de guerra e batalha, muito mais fortemente preparado e armado do que antes, e ainda com a esperança de vencer aqueles que estariam fracos, pois passaram fome, desnutrição e cansaço, por conta do cerco anterior. Após vários episódios de confrontos e tentativas vãs, restava a Clamadeu fazer um último ataque, que decide realizá-lo no dia seguinte.
Nesse mesmo dia no entanto, um navio chega à costa impelido por fortes ventos e para na cidadela do castelo, fazendo toda gente correr ao seu encontro jubilante.
“—Somos mercadores que trazemos provisões para vender: temos pão, vinho e toucinho, bois e porcos bons para o abate.
—Bendito seja Deus que deu força ao vento para vos impelir até aqui! Sede mui bem-vindos. Desembarcai tudo! Tudo está vendido, não importa o preço pedido. Tomareis o que for devido.”
Assim brada aquela gente sofrida.
Bom negócio é feito e muitas provisões chegam às pessoas. Logo, nas cozinhas, começa o preparo de fugaz refeição, tomada depois por todos. Os inimigos não poderão mais vencer este castelo pela fome.
No entanto, o inimigo, sem se dar por vencido, ainda lançou um último golpe: manda uma mensagem ao castelo, desafiando o jovem cavaleiro invicto para um combate ao meio-dia na planície.
O jovem cavaleiro, apesar da advertência e do temor por parte da sua donzela, toma sua decisão e aceita o desafio, partindo para o novo combate.
A longa luta que se travará, o nosso poeta a narrará em muitas linhas até a vitória do jovem galês. Depois ele escreve:
“Clamadeu tem de pedir mercê. Como fizera Anguingueron, acata as condições do vencedor.”
Ou seja, o perdedor deverá seguir os mesmos caminhos de Anguingueron até Artur, e ainda prometer libertar todos os prisioneiros feitos anteriormente, rechaçar qualquer exército que ameaçar o castelo e nunca mais causar contratempo à sua querida damizela.
“Assim Clamadeu retorna à sua terra e liberta todos os prisioneiros, que levavam triste vida nas mais sombrias masmorras. Quanta alegria no salão principal e em todos os alojamentos dos cavaleiros! Repicam em júbilo os sinos dos mosteiros e capelas. Não há monge nem freira que não renda graças ao Senhor.”
Clamadeu agora segue pelo caminho que leva até Disnadaron em Gales, onde o rei Artur e sua corte se encontravam reunidos. Chegando lá, seu antigo vassalo Anguingueron, que lá se encontrava também, bradou ao ver Clamadeu se aproximando:
“—Senhores! Senhores! Que espantosa aventura! Crede em mim: o Cavaleiro da Armadura Vermelha é quem envia esse cavaleiro que chega! Sim, pelo sangue que nele vejo, sei que foi vencido. Conheço-o bem, pois é meu senhor por direito e sou seu vassalo. Tem por nome Clamadeu das Ilhas. Sempre pensei que nenhum cavaleiro o igualasse em todo o império de Roma. Porém os melhores nem sempre são os mais felizes!
Assim fala Anguingueron, que acorre para seu senhor.
Era então Pentecostes. A rainha tinha assento perto do rei, no lugar de honra da grande mesa. Após ouvir missa no mosteiro, damas e cavaleiros estavam reunidos com duques, condes, reis, rainhas e condessas.”
Depois, encontrando-se diante de Artur, Clamadeu declara:
“—Que Deus salve e abençoe o melhor dos reis, o mais nobre e generoso! – diz ele – Seus altos feitos são por toda parte conhecidos e atestados. Caro Sire, escutai, tenho mensagem a transmitir. Embora me pese, devo dizer a verdade: fui enviado por um cavaleiro que me venceu e determinou que me entregasse ao vosso poder. Se perguntarem seu nome, não saberei dizer. Porém será fácil de reconhecer, pelos sinais que vou descrever: tem armas vermelhas e diz que as recebeu de vós.
—Amigo, que Deus te ajude! Dize-me se esse cavaleiro é bem-disposto, benevolente e vigoroso?
—Sim, caro Sire, podeis crer, é o mais valente cavaleiro com quem já tive afazer. Recomendou-me procurar a donzela que riu (e recebeu, para vergonha, uma bofetada de vosso senescal) e dizer que a vingará, se Deus permitir.”
Clamadeu também encontra a donzela ultrajada e lhe transmite a mensagem que trazia do cavaleiro que o derrotou.
Clamadeu e Anguingueron permanecem na corte de Artur e são admitidos como conselheiros.
“Durante esse tempo, o cavaleiro que salvara o castelo e a bela Brancaflor, sua amiga, vive junto dela bem à vontade e nos prazeres. Toda a cousa seria sua sem disputa. Porém os pensamentos do galês estão longe. Fica relembrando a mãe, que torna a ver desfalecida. Seu único desejo é ir revê-la. Não ousa pedir licença para partir à amiga, que aliás não consente e recomenda a toda a gente rogar que permaneça. Mas são vãs súplicas, exceto por uma promessa que ele faz: se encontrar a mãe com vida, vai trazê-la consigo e passará a governar a terra. Se a mãe estiver morta, retornará da mesma forma.
E parte, deixando a amiga entregue à dor e despeito. Todos estão mui tristes.”
Depois, o Cavaleiro Vermelho segue então outro caminho por todo o dia, mas sem saber que rumo tomar. Desesperado, …
“...reza sem cessar a Deus, o Pai Soberano, pedindo-lhe a graça de encontrar a mãe com vida e saúde.”
Adiante, chega a um rio de águas rápidas e profundas que o faz parar. Vai pela margem à procura de uma ponte ou passagem, até avistar uma barca com dois homens que se aproximava. Eles ancoram e o jovem cavaleiro vê que…
“...o homem à proa pesca com linha, espetando no anzol a isca de um peixinho não maior que carpa miúda.”
O jovem cavaleiro se pôs a falar com eles, e soube que não havia como cruzar o rio com o cavalo. O rapaz, no entanto, é convidado como hóspede para a noite que se aproxima, pelo pescador, que lhe orienta:
“—Subi por aquela brecha que cede lá na rocha. Chegando ao topo, avistareis um valezinho e uma casa onde habito, perto do rio e dos bosques.”
O jovem cavaleiro cavalga para lá e avista uma torre que o deslumbra. Chrétien comenta:
“Daqui até Beirute, homem não encontraria torre tão bem assentada!”
À entrada da torre, quatro valetes vem ao encontro do rapaz. Um conduz o cavalo para receber cuidados, dois retiram-lhe a armadura e o último lhe oferece um manto novo. Após isso, ele é conduzido para as galerias onde Chrétien também comenta:
“Daqui até Umbria, homem não encontraria tão belas galerias.”
Das galerias, dois serviçais vem buscar o rapaz para levá-lo até uma vasta sala quadrada. Ali se encontra sentado o Rei-Pescador, de cabelos quase brancos, vestido de túnica e capuz negros. Ele pergunta ao hóspede:
“—Amigo, de onde vindes hoje?
—Sire, esta manhã deixei um castelo de nome Bom Refúgio.
—Deus me guarde! Tiveste longa jornada! (…)”
Enquanto conversavam, um valete entra e oferece ao seu senhor uma espada que trazia pendurada no pescoço. O seu senhor, …
“...a puxa um pouco da bainha e vê claramente onde foi forjada, pois está escrito. É de aço tão duro que em caso nenhum quebra, exceto um único, sabido apenas por quem a havia forjado e temperado. Diz o valete que a trouxera:
—Sire, a loura donzela, vossa sobrinha a bela, vos faz presente esta espada. Jamais segurastes arma tão leve para seu tamanho. Pode ser dada a quem quiserdes, porém minha senhora ficaria contente se a pusésseis em mãos de alguém hábil no jogo das armas. Quem a forjou fez apenas tres. Como está morto, nunca mais poderá forjar outra.”
O Rei-Pescador entrega a bela espada ao jovem hóspede. O punho da espada era de ouro da Arábia ou da Grécia, a bainha de sabastro(9) de Veneza. O senhor apresenta-lhe a preciosa peça como um tesouro e diz:
“—Caro Sire, esta espada foi feita para vós e quero que assim seja. Peço-vos para a cingir e desembainhar(10).
Assim faz o jovem, agradecendo (…).
Enquanto falam de cousas e lousas, veio de um aposento um valete que segurava Lança brilhante, empunhada pelo meio. Passou ao largo do fogo e dos que estavam sentados. Uma gota de sangue vertia da ponta de ferro da Lança: e até a mão do valete deslizava essa gota rubra(11). O jovem hóspede vê a maravilha e se refreia para não perguntar o que significa. É que recorda as palavras de seu mestre de Cavalaria. Não ensinou ele que homem jamais deve falar demais? Fazer pergunta é vilania. Assim, não diz palavra.
Chegam então dois valetes segurando na mão candelabros de fino ouro nigelado. Mui belos homens eram os valetes que portavam os candelabros. Em cada candelabro ardiam dez velas pelo menos. Uma damizela mui bela e esbelta e bem trajada vinha com os valetes, trazendo nas mãos uma Taça(12). Ao entrar na sala, tão grande luz emanou desse Graal que as velas perderam a claridade, como as estrelas quando desponta sol ou lua. Atrás vinha outra donzela, portando um prato de prata. O Graal que ia à frente era feito do ouro mais puro. Tinha pedras engastadas, pedras de muitas espécies, das mais ricas e preciosas que existem no mar ou em terra. Nenhuma poderia ser comparada às que recamavam o Graal. Assim como havia passado a Lança, as pedras passaram diante dele. Foram de um aposento para outro. O jovem os ouviu passar, mas não ousou perguntar a quem apresentavam esse Graal no outro aposento, pois tinha ainda na mente as palavras do homem sábio, seu mestre de Cavalaria.
Temo que as cousas desandem, pois aconteceu-me ouvir que calar demasiado nem sempre é melhor que falar demasiado. Assim, quer isso traga astres ou desastres, o hóspede não faz uma só pergunta.”
[negritos nossos, pp. 65-66]
A uma ordem do senhor, é posta uma farta e gostosa mesa para a refeição de ambos. Mesa digna de reis e imperadores.
“Então mais uma vez o Graal passa perante os dois convivas; porém o jovem não pergunta quem é servido com ele. Continua a lembrar do homem probo incitando-o a não falar demasiado. Contudo, cala mais do que deveria.
A cada prato servido, via o Graal passar novamente à sua frente, todo descoberto. Mas não sabe a quem o servem. Não tem o menor desejo de saber. No dia seguinte pela manhã, quando deixar o senhor e toda a sua gente, será tempo de perguntar a um dos valetes da corte.
(…) Finalmente diz o homem probo:
—Amigo, é a hora do deitar. Se permitis, vou retornar a meus aposentos. Ai de mim, não tenho o menor poder sobre este corpo! É preciso que me carreguem.
Entram então quatro servidores mui robustos que pegam pelas pontas o edredom onde o senhor está deitado e o levam para seu quarto.”
[negritos nossos, p. 67]
O jovem cavaleiro também vai dormir no aposento que lhe destinam.
No dia seguinte, fato estranho, não encontra ninguém por perto. Portas fechadas e sala vazia. Bate em portas mas ninguém responde. Como num passe de mágica, todos sumiram. Do lado de fora, o jovem cavaleiro encontra seu cavalo selado e sua lança e escudo perto:
“Monta e vai por toda parte, procurando, mas a ninguém encontra: nem serviçais nem escudeiro ou valete. A ponte levadiça está baixada para o campo.”
Deseja ir rumo à floresta do outro lado da ponte, pois pensa em encontrar algum serviçal por lá:
“Irá então para aquele lado e talvez encontre algum deles que diga aonde levam esse Graal e por que a Lança sangra. Passa a ponte pensando assim; (…).”
[negrito nosso]
Após, …
“...vê que levantaram a ponte, sem que ninguém estivesse à vista. Chama, porém sem resposta. Brada:
—Dize, tu que levantaste a ponte, responde! Onde te escondes? Aparece, pois tenho algo a dizer!
Vãs palavras! Ninguém lhe responderá.
Vai então pela floresta. Em uma senda, encontra marcas recentes de cavalos que passaram.”
Seguindo em frente, encontra uma donzela chorando em desespero, sob um carvalho.
Ela passou a gritar:
“—Ai de mim, como sou infeliz! Malditas horas em que nasci e fui gerada! Prouvera a Deus que jamais tivesse de segurar no colo meu amigo morto! Por que sua morte e não a minha? (…).”
Sem encontrar conforto, a donzela se mantinha chorando, relembrando o amor de sua vida, que se encontrava ali deitado no seu colo, com um corte na cabeça. (...)
CONTINUA...
5 É certo que a Cavalaria clássica, como a conhecemos hoje, surgiu na França. Neste trecho de Chrétien de Troyes, percebe-se pela primeira vez na Literatura, a Cavalaria sendo apresentada como uma ordenação cristã, e como uma parte do plano da “Divina Providência”. É a cristianização crescente da Cavalaria que se faz ver.
6 Senescal: antigo mordomo–mor em certas casas reais; supervisor administrativo da corte; magistrado judicial ou governador-geral em certos Estados.
9 Tira de pano de cor diferente, para enfeite em paramentos, vestidos, etc. Variantes: sebastro, sabastro.
10 A espada simboliza o cavaleiro por natureza. É o distintivo visível do cavaleiro. O cavaleiro galês é aqui exaltado como um “Cavaleiro do Graal”, como perceberemos adiante.
11 A estória desta Lança do poema de Chrétien é inspirada na narração bíblica de João 19:34-35. Chrétien considera aqui a descoberta da “Santa-Lança de Longino” em Antioquia, pelos cruzados na Primeira Cruzada (1096) e mantida no Vaticano desde então (Lança de Longino do Vaticano). Também já havia na época do poeta, outra suposta Lança de Longino, presenteada a Carlos Magno séculos antes por um papa, e conservada em Viena na Áustria. No capítulo 8 falaremos sobre isso. Por certas composições de seus poemas, alguns historiadores acreditam que Chrétien de Troyes era um clérigo. Isso se deve ao fato de os clérigos terem sido os verdadeiros mestres da palavra e da escrita na época medieval. Mas tal alegação sobre nosso poeta não possui confirmação histórica comprovada, apesar de tudo indicar isso.
12 Na maioria das traduções do francês, traduz-se
somente “bandeja” e “vaso” ao invés de “taça”, pois bandeja é a tradução mais
certa e usual da época. O termo “taça” somente evoluiria mais tarde (em outras
literaturas) para o significado de Graal. Na tradução portuguesa que utilizamos
aqui, traduziu-se “taça”, pois é o termo mais famoso para Graal atualmente.
TERCEIRA PARTE
A HERANÇA DO GRAAL
Capítulo 7
Os Novos Poetas e
Escritores do Graal
“O
imaginário constrói e alimenta lendas e mitos.”
Jacques
Le Goff
7.6 – ROBERT DE BORON
O francês Robert de Boron(1) (fim do séc. XII/início do séc. XIII) nasceu na localidade de Boron (Franche-Comté), perto de Montbéliard (Mont Belyal) na França. Este poeta também associou o Graal com Jesus Cristo.
Ele trabalhava como poeta na corte de Gautier (Walter) de Montbéliard (? /1212), Senhor de Montfaucon. Robert era um clérigo e cavaleiro, e no começo do século XIII já era um importante autor de livros sobre as lendas arturianas, seguindo o exemplo de Chrétien de Troyes.
Duas Obras suas em versos octossílabos, viriam a ser seus maiores sucessos: “José de Arimatéia” e “Merlim”.
José de Arimatéia e Merlim se consagraram como personagens de destaque na estória do Graal. E isso continuaria daqui em diante.
De acordo com a estória de Robert de Boron, o cálice sagrado utilizado por Jesus Cristo na Última Ceia, foi reutilizado pelo príncipe e discípulo José de Arimatéia para coletar as últimas gotas do sangue do próprio Cristo em seu falecimento, após o soldado romano Longino lhe perfurar o flanco. Foi aí que Robert transformou o Graal de Chrétien no Cálice da Ceia de Cristo, dando uma conotação mais cristã ao Graal(2). É um cálice detentor de milagres, detentor de poderes, detentor da vida eterna. Os homens terão de aspirar encontrá-lo e de resgatá-lo, pois seria o suprassumo de sua busca até o divino e sagrado (que na verdade se mostra como uma busca por conhecimento). É a tentativa de comunhão com Jesus, ou seja, com o divino e com o próprio Deus Javé.
De acordo com esta estória de Robert de Boron, José de Arimatéia teria emigrado com sua família, logo após a crucificação de Jesus, para Avalon(3) no sudoeste da Grã-Bretanha, onde se localiza a abadia Glastonbury, e ali guardaram o Graal até a chegada de Perceval.
O que mais inspirou Robert de Boron no seu poema arturiano, foi um acontecimento de sua época, onde os monges de Glastonbury afirmaram ao mundo terem descoberto, no cemitério da abadia, as tumbas do verdadeiro Rei Artur e de Güinevere, sua amada.
Os monges disseram que havia uma inscrição no túmulo que dizia: “Aqui jaz enterrado na Ilha de Avalon(4) o conhecido Rei Artur”. A descoberta foi em 1191. Mas a veracidade de tal achado não foi comprovada até hoje. Sabe-se que os “supostos” restos mortais do casal real, foram depois transportados e enterrados dentro da própria abadia de Glastonbury em 1278, e em seguida perdidos durante a Reforma Protestante no século XVI, “segundo uma lenda”.
O que realmente se tem conhecimento, é que o próprio convento de Glastonbury foi destruído entre 1536 e 1540 pelo rei Henrique VIII, assim como outros edifícios em toda parte, por causa da demanda por materiais obtidos da demolição, e necessários a seus novos projetos de construção e melhorias em outros edifícios por todo o reino.
Glastonbury, por razões dinásticas, políticas, monásticas e de prestígio, tinha todos os ingredientes para chamar a atenção para si própria. Por exemplo, os monges de lá diziam que sua igreja (a “Velha Igreja”) era a primeira igreja construída em solo inglês, inaugurando o nascimento do cristianismo na Inglaterra...
Muitos estudiosos afirmam que a descoberta dos monges foi forjada ou falsificada por eles mesmos, para enaltecer a origem antiga de Glastonbury e assim aumentar a sua fama, pois naquela época, os negócios com relíquias religiosas e peregrinações, eram muito lucrativos para as abadias.
O que a História sabe de concreto sobre um tal “rei Artur”, é que ele é um mito. No século XII, assim como no século XIII depois, este Artur mitológico tornou-se a sensação do momento, enaltecendo a imaginação heroica das conquistas, batalhas e amores. E isso, graças a Chrétien de Troyes.
Hoje, Glastonbury é um centro religioso e de peregrinação, onde o misticismo faz parte de sua história local. Da antiga igreja da abadia, restam apenas algumas ruínas vazias, mas ainda imponentes. Nos seus arredores, pode ser admirada uma de suas colinas, que tem como característica marcante o “formato” de um cálice. Ela é chamada de “a Colina do Cálice”…
Como já vimos, Chrétien de Troyes focou seu “Perceval ou O Romance do Graal”, na taça Graal e na Lança. Robert de Boron, no entanto, fez evoluir radicalmente o tema “Graal”. O seu romance em versos chamado “A estória do Graal” (L’Estoire du Graal), foi concebido em forma de trilogia e depois mudada para a forma em prosa, e foi baseada em narrativas de evangelhos apócrifos, como o de Nicodemos.
A trilogia foi concebida assim:
1) José de Arimatéia (A estória do Graal)
2) Merlim (A estória de Merlim)
3) Perceval (A diáspora dos cavaleiros da Távola Redonda e a morte de Artur)
Em seu romance, Boron mescla o Graal com uma gama de aventuras em torno da estória do rei Artur e o príncipe discípulo de Jesus Cristo, José de Arimatéia.
José de Arimatéia é um herói e um soldado, e Boron o aponta como um exemplo e modelo para a classe de cavaleiros.
Boron conta que um dos homens que tomaram parte na captura de Jesus, foi à casa onde Jesus havia feito a última ceia com seus discípulos e pegou o “receptáculo” onde Jesus partiu o pão e comeu o cordeiro pascal. No entanto, o homem entregou o receptáculo a Pôncio Pilatos. Mas Pilatos, não querendo para si próprio nada que pertencesse ao “tal” Jesus, deu a preciosidade ao príncipe judeu José de Arimatéia. Este, conservou consigo o receptáculo e usou-o para recolher o “sangue sagrado” do Filho de Deus que escorreu da ferida feita pela lança de Longino, após tirá-lo da cruz para lavá-lo e prepará-lo para o sepultamento.
Depois, nem bem o corpo de Cristo sumiu da tumba, através da famosa “ressurreição”, José foi preso pelos judeus. Na prisão, apareceu diante dele a figura sobrenatural de Jesus, com o “receptáculo” da última ceia na mão, lhe revelando que havia ressurgido dos mortos. Jesus, então, entregou o receptáculo a José de Arimatéia, ordenando-lhe que celebrasse uma missa em comemoração à sua crucificação.
Até este ponto da estória, Robert chama o prato utilizado na última ceia de Jesus, de “receptáculo”. Mas após o contato de José de Arimatéia com o Cristo ressuscitado, Robert passa a chamá-lo de “Graal”, exaltando seu poder e sua santidade.
O fato de o sangue de Cristo ser considerado sagrado pelos fiéis, como já explanei, é porque provém do Filho de Deus, pois a religião ensina que tudo o que vem de Deus é sagrado. Este fato faz com que o receptáculo que colhe este sangue, também seja sagrado. É o “cálice da ceia sagrada e do sangue sagrado”, ou seja, é o “receptáculo sagrado”, chamado agora por Robert de Santo Graal.
O sangue, em si, sabemos ser a base de todo o princípio vital, seja nos animais ou nos seres humanos, fazendo com que “sangue” tenha toda uma simbologia por isso. Na Antiguidade e na Idade Média, o sangue era considerado como a sede ou moradia da alma, por ser o princípio vital dos seres vivos.
Continuando, José tornou-se então o guardião do Graal. E isso através do próprio Jesus Cristo!
Quando José é solto da prisão, reúne ao seu redor um grupo de discípulos e lhes mostra o Graal sob sua responsabilidade. Em seguida, ele emigra com sua família para Avalon na Grã-Bretanha, terra do rei Artur, fixando-se na abadia Glastonbury, onde guardariam o Graal até a chegada de Perceval.
José então constrói uma mesa redonda para honrar o Graal: a “Távola Redonda”. Nela, o Graal seria colocado no centro, destacando-se.
Depois disso, o precioso Graal passou de José de Arimatéia para as mãos de seu cunhado Bron, que será o novo guardião do Graal. Bron, por sua vez, se transforma no Rei-Pescador. Daí em diante, ele e seus seguidores são chamados de “A Sociedade do Graal”.
Robert de Boron reescreveu a estória do Graal, fazendo do Graal um símbolo da “divina graça”, da qual a alma humana aspira fervorosamente.
Em seu poema, ele deu livre curso à sua fantasia literária. Robert escreveu que Jesus ensinou José de Arimatéia “palavras secretas” que a ninguém podia contar, nem escrever, sem ter lido primeiramente o “Grande Livro” no qual elas estariam consignadas. Tais palavras, ele diz serem pronunciadas no momento da consagração do Graal.
Outro trabalho de Robert de Boron foi a Obra “Perceval” em prosa, conhecida como “Didot-Perceval”, e contém um grande número de episódios, livremente imitados, daqueles narrados por Chrétien de Troyes.
A Obra mística da estória do Graal de Robert tornou-se a glorificação do sacramento eucarístico, pois seu Graal é ao mesmo tempo, a vasilha em que Jesus partiu o pão e comeu o cordeiro da Páscoa e no qual foi recolhido seu sangue na crucificação.
Com a morte repentina do famoso poeta francês Chrétien e seu poema do Graal inacabado, somado a todas estas estórias (continuações), aconteceu que o Graal se tornou uma demanda poética sem igual!
Então, por quase cinquenta anos, muitas narrativas foram produzidas abordando temas ligados ao rei Artur, marcando um ciclo literário que apaixonou o público medieval. Em suas narrativas, os autores preservavam o clima de magia e encantamento, juntamente com a procura que o cavaleiro herói deveria empreender para alcançar a vitória e a glória.
Nessa época, toda produção artística “pagã” tendia a ser “cristianizada” para uma aceitação da Igreja Católica, pois ela considerava qualquer produção não ligada aos dogmas da Igreja como heresia, expondo seus criadores a perigos. Os reis europeus da Cristandade ainda davam nessa época toda liberdade para o clero. Enquanto assim era, a Igreja, por sua vez, dizia que: “O rei é um enviado de Deus”. Mas depois, veio a ascensão do imperador alemão Frederico II, que trabalhou para mudar esta ordem de coisas, seguido pelos reis franceses.
Apesar do Graal literário ter-se ligado em suas origens (depois de Chrétien de
Troyes) ao cristianismo, mesmo assim, a Igreja nunca aderiu a ele, como
dissemos, a não ser algumas comunidades e igrejas isoladas. Bem diferente foi o
caso de outras relíquias, como a Lança de Longino e o frasco com as supostas
gotas de sangue do Cristo.
2 A análise do poema de Chrétien, faz ver que seu poema sobressai mais como uma aventura cortesã, empreendida pelo amor a uma dama ou pela honra de um rei. Ele não explica qual é a natureza da jóia Graal.
3 Avalon: do celta abal (maçã) ou do galês avalla (maçãs), quer dizer “o lugar das maçãs”. Houve duas Avalon. Uma a sudoeste da Bretanha insular (atual Grã-Bretanha) e outra na região de Borgonha (França). A Avalon da Grã-Bretanha é famosa até hoje por produzir sidras. Já a Avalon de Borgonha, fica próxima ao lugar da última batalha de Riotamus, citada no capítulo 5.
4 O fato de Avalon da Grã-Bretanha ser citada
como uma ilha é creditado ao fato daquelas terras serem cercadas por pântanos,
dando uma conotação de ilha, principalmente nos períodos de chuvas.
Capítulo 11
A Escalada do Graal
11.5 – OSKAR ERNST BERNHARDT
Já se passaram mais de 800 anos, desde que Chrétien de Troyes escrevera sua estória incompleta e inventara o Graal e Perceval. Quantos escritores então surgiram, dando livre imaginação à estória oriunda da França. Outros, no entanto, reescreveram a estória de Chrétien de tal modo que quase não se reconhece mais a original do poeta de Troyes. Mas assim é a Literatura e as composições. Um escritor por profissão, sabe realmente realizar proezas com a imaginação, a fantasia e a palavra escrita. É um artista!
Como vimos, Alfred Tennyson e Wagner foram o estopim para uma nova geração de escritores do Graal dos séculos XX e XXI. É assim que chegamos a mais um escritor nesta série sequencial. Seu nome é Oskar Ernst Bernhardt (1875-1941), nascido na Saxônia, Alemanha, e pouco conhecido.
Bernhardt passou sua juventude em Bischofswerda (Saxônia), sua cidade natal, e depois de muitos insucessos profissionais e viagens pelo Oriente, fixou residência em Vomperberg, Tirol, na Áustria, juntamente com sua esposa Maria Freyer Bernhardt (1887-1957) e os tres filhos dela, em 1928. Ali, ele prosseguiu na sua carreira de escritor, e como maçon, fundou um Movimento na propriedade da família, chamado “Loja Branca”(1) e “Loja de Abd-ru-shin”, mas que a partir de 1929 foi rebatizado de “Movimento do Graal”, para assim estabelecer uma separação da maçonaria tradicional, preferindo trilhar um caminho próprio. O local de sua residência ficava no flanco de uma montanha, que Bernhardt batizou de “Montanha da Salvação”, onde começou a se formar uma comunidade de adeptos chamada de “Comunidade do Graal”.
Nas mãos deste escritor, a lenda do Graal transformou-se em profecia e religião.
Sua doutrina levou o Graal para o “outro mundo”, mais conhecido como “Além”, e elevou o Graal definitivamente para o plano celeste do Deus cristão Javé.
Sim, Bernhardt transformou o Graal dos poetas em doutrina e religião, e eu, como ex-membro de sua seita messiânica, transmitirei aqui toda a vivência detalhada de suas aspirações ao Graal e Perceval, contidas em suas Obras escritas, e que tem ligação direta com a primitiva Obra de Chrétien de Troyes e principalmente com a herança posterior proveniente dos outros poetas(2).
Bernhardt foi tão longe como nenhum outro já o fora antes com o tema “Graal”, a ponto dele se proclamar o próprio Messias do Graal e Filho de Deus. Tanto, que alguns jornais austríacos de sua época o chamaram de “Messias do Tirol” e “Profeta de Vomperberg”. Eu o chamo de “Messias do Graal do Céu”.
Bernhard se proclamava o messias divino “Parsival” e o rei do Graal ressurgido, e acreditava ser o mediador entre a ordem cósmica e a ordem terrena, tal qual no poema de ficção de Wolfram von Eschenbach, Parsifal.
Em seus escritos, o Messias do Graal do Céu, Bernhardt, se mostra trazendo a salvação para a Humanidade e fazendo uma ligação do Deus Javé com a Humanidade através do Graal, onde ele mesmo, Bernhardt, é o intermediário que realiza tal proeza. E esta proeza só poderia se realizar, segundo ele, pela aceitação de “seus escritos” pela Humanidade. Escritos esses, que foram divulgados mais tarde como sendo “a Palavra Sagrada de Deus”, pois até então, segundo Bernhardt, a Humanidade estava separada e abandonada por Deus, devido aos seus “pecados”. E isso, desde a morte de seu antigo “irmão”, que não é outro, senão Jesus Cristo, que segundo ele, havia sido assassinado pela Humanidade há dois mil anos.
Assim, Deus surgiria agora encarnado em sua figura como a última oportunidade da Humanidade se redimir, afirmando que a redenção só se daria pela aceitação e cumprimento de sua “palavra sagrada”.
Bernhardt é um típico caso de “Complexo de Messias”, ou como explicam os especialistas em psicologia, “um estado psicológico no qual o indivíduo acredita que ele (ou ela) está destinado a se tornar o salvador de algum campo de atuação específico, grupo, evento, período de tempo ou até mesmo do mundo inteiro”. Os afligidos pelo Complexo de Messias louvam sua própria glória ou alegam absoluta confiança em seus próprios destinos e capacidades e nos efeitos que terão sobre um grupo de pessoas ou aspecto da vida. Em alguns casos, o Complexo de Messias pode estar associado à esquizofrenia, onde a pessoa ouve vozes, tem alucinações e acredita que é Deus, ou espíritos, anjos, deuses ou outros que falam com ele, o que, na visão da pessoa, confirmaria sua messianidade. Nos casos mais graves, pessoas com Complexo de Messias podem se ver literalmente como Messias espirituais-religiosos com poderes transcendentes e destinados a salvar o mundo.
Os conceitos e saberes de Bernhardt, em sua doutrina, mostram resquícios dos poetas do Graal, mas principalmente da composição de Richard Wagner e muito da Bíblia, além da crença na reencarnação e nos “espíritos da natureza” conhecidos como fadas, gnomos, elfos, sereias, etc. Esta é a base da doutrina de Bernhardt. Ele reinterpreta tais conceitos e saberes à luz de sua própria época, e que culminaram com desenvolvimentos místicos próprios. Foi através de muitas conjecturas, ora psicológicas, ora esotéricas, somadas a fantasias e ideias fantásticas próprias, que o Graal do século XX se transformou em doutrina religiosa, com seu próprio messias Rei do Graal ressurgido. O Graal, no entanto, será agora um Cálice Divino e não uma pedra, e também “simbolicamente” o próprio livro principal de Oskar Bernhardt: “Na Luz da Verdade, Mensagem do Graal”.
Na época anterior à Segunda Guerra Mundial, o folclore germânico e suas lendas estavam em alta, juntamente com todo tipo de assunto místico e ocultista, principalmente tudo aquilo relacionado ao assunto Graal, Perceval e os outros personagens, devido ao romantismo crescente do século XIX e as Obras de Alfred Tennyson e Richard Wagner, que fizeram ressurgir os poemas e contos arturianos da Idade Média. Fato esse, visto até em óperas e músicas como já mostramos. Bernhardt mesmo, no verão de 1935, assistiu em Viena à ópera Lohengrin (com a famosa Charlotte Lehmann, 1888-1976) tão ligada a este universo da lenda do Graal.
A doutrina do Graal se iniciava no ano 1923, quando Bernhardt começou a escrever diversos textos e dissertações sobre questões da vida, leis “divinas”, comportamento humano, Graal, cristianismo, Trevas e Paraíso. Seus textos doutrinários iniciais, eram chamados de “Folhas do Graal” (Gralsblätter), e foram publicados pela sua própria editora de mesmo nome: Editora Gralsblätter. Mais tarde, estes textos se transformariam em livro. Um livro que ele chamou de “Na Luz da Verdade, Mensagem do Graal” (Im Lichte der Wahrheit - Gralsbotschaft).
Inicialmente esta Obra havia sido publicada em um volume somente, conhecido como edição pequena de 1926 e depois edição de 1931 ampliada. Atualmente seu livro está dividido em tres volumes. É composto por 168 dissertações, e algumas delas possuem os seguintes títulos: O ser humano terreno diante de seu Deus; O Livro da Vida; O reino de Mil Anos; O grande cometa; O anticristo; É aconselhável o ensino do ocultismo?; Espiritismo; A oração; O Pai-Nosso; Adoração a Deus; O mistério Lúcifer; As regiões das trevas e a condenação; As regiões da Luz e o Paraíso; Eu sou o Senhor, teu Deus!; A imaculada concepção e o nascimento do Filho de Deus; A morte do Filho de Deus na cruz e a Ceia; Instinto dos animais; A missão da feminilidade humana; O mistério do sangue; Natal.
Bernhardt adotou um pseudônimo de escritor, assinando seus livros com o nome “Abd-ru-shin” ou “Abdruschin”, nome que ele interpreta significar “Filho da Luz” e “Servo da Luz”. Bernhardt adotou como pseudônimo este nome estrangeiro, porque ele acreditava que ele próprio era chamado assim na sua “vida passada”, ou seja, na sua “encarnação” anterior.
Bernhardt se declarou Filho do Deus cristão e irmão divino de Jesus Cristo, declaração essa que se espelha nas citações tardias da Bíblia, onde aparecem os termos “Imanuel” e “Filho do Homem” como sendo um tipo de “juiz cósmico” vindouro.
Para Bernhardt, a designação bíblica “Imanuel” não é um termo(3), mas uma “outra pessoa” que a Bíblia anuncia, ou seja, seria um “outro Filho de Deus” também apelidado de “Filho do Homem”. Filho este, que para Bernhardt estaria destinado a trazer o Julgamento Final à Humanidade no século XX, “segundo a vontade de Deus” e segundo sua própria interpretação da Bíblia.
Bernhardt angariou um número razoável de seguidores ao seu Movimento e doutrina. Selecionou pessoas, colocando-as em ofícios determinados e hierarquizou seu Movimento. Tal hierarquia seguia a seguinte ordem: em primeiro vinha o próprio Bernhardt como “Filho de Deus e Rei do Graal”, depois o alto posto de “cavaleiros” (como na maçonaria)(4), em seguida os “apóstolos”, depois os “discípulos”, depois os “convocados” e por último os “membros da cruz de prata”, que seriam os membros comuns efetivados, mas sem uma distinção específica, além de praticantes dos ensinamentos do Messias do Graal do Céu. Mas também havia aqueles que ainda não eram membros efetivos, mas somente “simpatizantes” das ideias de Bernhardt, e que eram chamados de “noviços” (iniciantes).
A religião de Bernhardt, obviamente gira em torno daquilo que ele projetou de sua própria pessoa. Mais especificamente, ele escreveu ser várias personalidades em uma só (4 em 1), personalidades estas, que variavam de nome conforme o “plano” (espécie de mundo paralelo ou dimensão) em que a personalidade se encontrava em dado momento de sua vida ou da época em que Bernhardt, como Filho de Deus, se encontrava incorporado numa personalidade equivalente. Essa ideia sua, segue a seguinte ordem cronológica partindo do Deus bíblico Javé, seu suposto Pai celestial, chegando até a Humanidade no plano terrestre:
1- O Imanuel divino, o mesmo “Filho do Homem” e “Espírito Santo”, como Juiz divino e irmão gêmeo de Jesus Cristo.
2- O Parsival(5) divino, o guardião supremo do Graal Celeste, localizado no Burgo do Graal no ápice da Criação divina, onde ele seria “o Rei dos Reis”.
3- O Abdruschin celeste, de um plano celeste “intermediário”, e encarnado na Terra séculos antes de Cristo como príncipe árabe de mesmo nome, responsável por dar os 10 Mandamentos de Javé a Moisés, agindo assim como o intermediário entre Deus e Moisés.
4- O Oskar Ernst Bernhardt terrestre, escritor e místico que escreveu uma “Mensagem Divina” (divinamente inspirada) no século XX, para a salvação da Humanidade, chamada “Na Luz da Verdade, Mensagem do Graal”. Foi sua última reencarnação na Terra como Homem-Deus Uno com o Pai.
Mais adiante apontaremos vários trechos escritos por Bernhardt-Abdruschin, onde ele tenta legitimar tais confissões e “patentes”, acima descritas.
O “livro sagrado” de Bernhardt, Na Luz da Verdade, Mensagem do Graal, é atualmente dividido em 3 volumes desde 1949(6). No volume 2 existe um capítulo que trata somente da questão “Graal”. É a dissertação número 34, sob o título “O Santo Graal”. É fácil observar nesta dissertação, todo o místico criado pelo autor, juntamente com toda uma gama de ideias próprias, onde a imaginação não tem limites, principalmente se comparada com os poetas do Graal místico medieval, pois Bernhardt preenche novas expectativas, atraindo seu grupo de seguidores graalitas. É uma nova demanda do Graal. É o Graal moderno religioso, que fala e explica a suposta história de um “Graal Divino”, como um “verdadeiro Graal existencial” nas “alturas celestiais” do Deus cristão, o criador de todas as coisas.
Bernhardt-Abdruschin, então, assume para si a responsabilidade de explicar esse Graal distinto que só Deus conhece, à Humanidade, e ao explicá-lo, acredita estar conduzindo a Humanidade para a “salvação” no Juízo Final, se ela seguir as diretrizes que ele aponta em seu livro. É o maior trabalho intelectual doutrinário já escrito sobre o Graal. No entanto, diferente dos escritores poetas anteriores, ele não é nada poético, mas tão-somente doutrinador.
Na literatura de Bernhardt, o Graal não é mais o vaso da hóstia eucarística, ou o cálice de Cristo, ou uma pedra, mas sim o “Cálice Divino mantenedor da vida e do Universo(7)”, que se encontra no Céu de Deus (mundo divino) e nunca alcançável pela Humanidade. Tal Graal nunca esteve na Terra, nem possui ligação alguma com o cálice da última ceia de Jesus ou do colhimento de seu sangue. No entanto, o Deus Javé enviou do Reino do Graal Celeste uma Mensagem de salvação para a Humanidade, através de seu Filho Parsival, encarnado em Oskar Bernhardt. Por isso o livro deste escritor se chama “Mensagem do Graal”, ou seja, do “Reino do Graal Celeste”. E por isso Oskar Bernhardt escreve e explica o conteúdo de seu livro tratando os seus Leitores por “seres humanos” em vez de simplesmente “leitor” ou “pessoa igual”, pois ele, se considerando o Deus encarnado (“Uno com o Pai”), tenta manter uma distância hierárquica entre Deus e “suas criaturas”.
O fato de Bernhardt ter escrito um livro para explicar o Graal e sua doutrina, nos faz lembrar daquele autor anônimo inspirado na Obra de Robert de Boron, que falamos no capítulo 7, que associou o Graal a um “livro” que ele disse ter sido escrito por Jesus Cristo e que se chamou “Le Grand Graal”. Segundo aquele autor, o livro possuia muitas verdades de fé e contava que o Graal-Livro tinha o poder de “iluminar” quem o lia, desde que o seu Leitor estivesse nas “graças” de Deus. De certo modo, para os adeptos atuais da doutrina do Graal de Bernhardt, o livro “Na Luz da Verdade, Mensagem do Graal”, também representa simbolicamente o “Graal Vivo”, sendo o “livro dos livros”, ou seja, o “Graal-Livro”.
Observemos agora, o que Bernhardt escreve sobre o Graal nesta sua dissertação “O Santo Graal”, juntamente com minhas observações de quando em quando, pois é esta dissertação que expõe a principal ideia de Bernhardt sobre o Graal tratado até aqui. Vejamos:
“Inúmeras são as interpretações das composições poéticas que existem sobre o Santo Graal. Os mais sinceros eruditos e pesquisadores se ocuparam com esse mistério. Muito disso tem elevado valor ético, porém tudo traz em si o grande erro de mostrar uma construção que parte do plano terrestre para cima, ao passo que falta o principal, o facho de luz de cima para baixo, único capaz de vivificar e iluminar.
Tudo quanto se esforça de baixo para cima tem que se deter no limiar da matéria, mesmo que lhe haja sido outorgado o que de mais elevado possa obter. Na maioria dos casos, porém, mesmo com as mais favoráveis condições preliminares, mal pode ser feita a metade desse caminho. Quão longo, no entanto, ainda fica o caminho para o verdadeiro reconhecimento do Santo Graal!”
Neste primeiro trecho acima, podemos observar que Bernhardt não conhecia Chrétien de Troyes e sua Obra. Não há nenhuma construção espiritual ou de interpretação a ser feita até o Graal como ele indica, pois já sabemos que Chrétien criou o Graal como uma bandeja-vaso com uma hóstia dentro, aqui na Terra, taça esta que pertencia ao Rei-Pescador, e se encontrava num castelo medieval. Este fato o Leitor já pôde constatar ao ler as partes da Obra original de Chrétien e verificado que nela não há nenhum conteúdo de “descoberta divina” ou “Palavra de Deus”, sendo somente um poema cavaleiresco patrocinado por um conde para sua côrte. Nós já sabemos que todas as estórias sobre o Graal derivam da estória original francesa incompleta de Chrétien de Troyes, mas Bernhardt não, pois se ele o soubesse, jamais teria se enganado a ponto de não citar a Obra criadora de Chrétien com suas citações simples, deixadas incompletas devido a sua morte. A composição de Chrétien, porém, não deixa dúvidas quanto ao seu sentido e conteúdo.
Bernhardt dá nesta sua dissertação, importância em demasia ao termo “Graal”, propositadamente, para assim colocar o Graal no “Céu”, distante da Humanidade, tornando-o “o Graal Santo de Deus”, portanto, divino, e assim, explicável somente por ele mesmo, que se considera o Filho de Deus e seu mensageiro na Terra. Desse modo, o Graal e Perceval tornam-se uma “promessa divina”. É daí que surgirá a “condenação espiritual” do ser humano defendida por Bernhardt em sua Obra. Bernhardt prossegue mantendo esta linha de pensamento, como veremos a seguir. Ele também aproveita a ocasião e condena os poetas e pesquisadores do Graal, para assim oferecer o “seu Graal” como o verdadeiro, o certo e único:
“Esse sentimento intuitivo da inacessibilidade se manifesta, por fim, nos pesquisadores. O resultado disso é que procuram conceber o Graal como sendo uma designação puramente simbólica de um conceito, a fim de lhe dar assim aquela altitude, cuja necessidade para tal designação sentem intuitivamente com acerto. Com isso, porém, na realidade, vão para trás, não para frente. Para baixo, ao invés de para cima. Desviam-se do caminho certo já contido em parte nas composições poéticas.
Somente estas deixam pressentir a verdade. Mas apenas pressentir, porque as elevadas inspirações e as imagens visionárias dos poetas na transmissão foram demasiado materializadas pela ativa participação do raciocínio. Deram à retransmissão daquilo que foi recebido espiritualmente uma imagem do ambiente terrenal contemporâneo, a fim de tornar o sentido de suas Obras poéticas mais compreensível às criaturas humanas, o que apesar disso não conseguiram, porque eles próprios não puderam se aproximar do núcleo propriamente dito da verdade.
Assim foi dada de antemão uma base incerta para as ulteriores pesquisas e buscas; colocada com isso uma restrita limitação a cada êxito. Não é, portanto, de pasmar, que por fim somente se podia pensar em mero simbolismo, transferindo a libertação pelo Graal para o íntimo de cada ser humano.
As interpretações existentes não são destituídas de grande valor ético, mas não podem ter nenhuma pretensão de constituírem um esclarecimento das Obras poéticas, e muito menos se aproximarem da verdade do Santo Graal.”
Quanta confusão. Mas a confusão é proposital na Obra de Bernhardt, pois deve confundir propositalmente o seu leitor devido a crença cega exigida, como acontece com qualquer religião.
Sobre as Obras poéticas, já vimos que são “ficções literárias”, e que a única Obra original é a francesa, e esta, nunca foi uma promessa divina, mas sim, uma promessa humana mística. Chrétien de Troyes foi o “criador do Graal” que antes não existia sob nenhum aspecto, e nunca fora mencionado. Os poemas sobre o Graal foram motivo de lazer e de apreciação na descontração das pessoas e das cortes, e não algo a ser seguido como história factual ou como uma crença ou religião ou algo semelhante a isso.
Mas como Bernhardt estava criando uma doutrina nova, baseada também nos poemas medievais do Graal, precisava agir assim em suas conclusões, para fundamentá-la.
Por isso, Bernhardt primeiramente santifica os poetas ao dizer: “…as elevadas inspirações…”, mas logo em seguida ele os condena dizendo: “…foram demais materializadas pela ativa participação do raciocínio” e “eles próprios não puderam se aproximar do núcleo propriamente dito da verdade”. Bernhardt dá com uma mão e tira com a outra. Isso serve para desviar a atenção de seus leitores, deixando-os sem certeza, para assim atingir os seus objetivos doutrinários. O poder de reflexão e análise do ser humano, e que provém do raciocínio de cada um, Bernhardt condena sumariamente, para desse modo tirar o chão e a razão do leitor.
Outra coisa: Bernhardt diz no trecho anterior, que “deram à retransmissão daquilo que foi recebido espiritualmente, uma imagem do ambiente terrenal contemporâneo, a fim de tornar o sentido de suas Obras poéticas mais compreensível às criaturas humanas, o que apesar disso não conseguiram, porque eles próprios não puderam se aproximar do núcleo propriamente dito da verdade. Assim foi dada de antemão uma base incerta para as ulteriores pesquisas e buscas; colocada com isso uma restrita limitação a cada êxito”. Ele diz isso como uma necessidade sua, ou seja, de colocar o sentido e a visão dos poetas antigos, no campo da “incompreensão”, pois a “compreensão” somente Bernhardt “agora” trazia, fechando-se um ciclo que para ele se iniciara com os poetas do Graal do passado.
Bernhardt continua seus escritos levando a sério o Graal inspirado dos poetas como uma “verdade divina oculta”, como se de fato existisse um Graal no céu, mas cuja interpretação, pelos poetas anteriores, segundo ele, foi errada até hoje, tornando-se verdadeira somente “agora” pelo modo como Bernhardt, o Filho de Deus encarnado, a interpreta na sua religião graalita visionária:
“Também não se entende por Santo Graal o cálice de que o Filho de Deus se serviu no fim de sua missão terrena, quando da última ceia junto com os discípulos, e no qual foi recolhido seu sangue na cruz. Esse cálice é uma recordação sagrada da sublime obra salvadora do Filho de Deus, mas não é o Santo Graal, para cujo louvor os poetas das lendas foram agraciados. Essas Obras poéticas foram erradamente interpretadas pela Humanidade.
Deviam ser promessas provenientes de elevadíssimas alturas, cujas realizações as criaturas humanas têm de esperar! Tivessem sido interpretadas como tais, então certamente, já há muito, outro caminho teria sido também encontrado, que poderia conduzir as pesquisas ainda um pouco mais adiante do que até agora. Mas assim teve que se apresentar finalmente um ponto morto em todas as interpretações, porque jamais se poderia alcançar uma solução total, sem lacunas, uma vez que o ponto de partida de cada investigação se encontrava de antemão em base errada, devido à concepção errônea de até então. ――
Jamais conseguirá um espírito humano, mesmo que tenha alcançado a sua maior perfeição e imortalidade, ver-se na presença do Santo Graal! Por tal motivo, também jamais pode descer de lá à matéria, à Terra, uma notícia satisfatória sobre isso, a não ser através de um mensageiro que tenha sido mandado de lá. Para o espírito humano, portanto, o Santo Graal terá de permanecer sempre e eternamente um mistério.”
Sobre estas linhas de Bernhardt já nos referimos nos trechos dos escritores pós Chrétien e sobre os templários, mostrando-nos algo distinto e factual. No entanto, para uma religião, estas linhas de Bernhardt servem. Quem leu nos capítulos anteriores as partes apontadas sobre o Graal e Perceval, teve nas mãos a investigação original e certa à disposição. O caminho que conduz as pesquisas adiante, pode ser encontrado nos capítulos anteriores. Lacunas não existem. É fácil de se fazer uma crítica textual abrangente, em todos os pontos.
Os poetas do Graal não introduziram falhas e erros nas lendas do Graal, como Bernhardt ainda expressará adiante, mas simplesmente “criaram” poemas do Graal para divertir e homenagear as cortes, e que depois viraram lendas. A lenda do Graal veio depois dos poemas do Graal e não o contrário! Os poemas e as ambições na “caça às relíquias cristãs” durante as cruzadas, geraram lendas, ou seja, mitos, e também o contrário, geraram mitos que depois originaram lendas.
Daqui pra frente, na dissertação O Santo Graal, Bernhardt chamará a atenção de seus leitores falando (...)
CONTINUA...
1 Loja: do italiano “Loggia” que traduzido é “Loja Maçônica” e significou “lugar de reuniões dos maçons”. Em inglês “Lodge”.
2 O Autor Vito Marino foi membro de uma facção do Movimento do Graal de Bernhardt, criada no Brasil, chamada Ordem do Graal na Terra. Vito Marino foi adepto-simpatizante (noviço) desta Organização, de 1989 a 1991, e membro efetivo de 1991 a 2008, tendo atuado em diversas áreas dentro da Organização. Foram 19 anos de vivências e dedicação para com a filosofia graalita de Oskar Ernst Bernhardt. Atualmente, no entanto, após imensas transformações de pensamento e descobertas pessoais, o autor repudia esta seita, assim como suas ideias, ao seu ver agora, atrasadas, decadentes, mentirosas e prejudiciais às pessoas.
3 “Imanuel” não é um “nome” mas sim, um termo bíblico não traduzido do idioma hebreu. Imanuel era uma frase da Bíblia hebraica mais antiga, que se transformou em “nome próprio” na Bíblia cristã “posterior”. Imanuel vem de “imm-nu-El”, que traduzido significa “Deus está conosco”, e servia para se referir à presença de Jesus Cristo na Judeia há dois mil anos. Na Bíblia hebraica (Antigo Testamento) a frase “Imanuel” era usada quando um profeta dos israelitas anunciava algo de maior importância às pessoas do povo. Vide, por exemplo, Isaías 7 e 8; Ageu 1:13 e Zacarias 8:23.
4 Bernhardt ensinava que o “cavaleiro” de sua seita era a reencarnação viva dos anciãos citados na Bíblia. Anciãos estes, que Bernhardt chama também de “primordialmente criados” (antes da encarnação terrena), e que também são os “guardiões celestes do Graal”.
5Conforme a tradução da Editora brasileira do original alemão, “Parsival” com “v” se torna uma nova grafia para Perceval, Parsifal ou Parzifal.
6 Sendo que o volume 1 (256 pp.) foi publicado no final de 1949 e os volumes 2 (480 pp.) e 3 (512 pp.) em 1950.
Introdução.................................................................................15
PRIMEIRA PARTE: A Idade Média e a nova inspiração ocidental
Capítulo 1
As Cruzadas cristãs e seus efeitos...........................................19
Capítulo 2
Acontecimentos marcantes
de uma região e sua cronologia................................................50
Capítulo 3
A herança dos templários........................................................ 56
Capítulo 4
A cavalaria medieval e a revolução social............................... 65
SEGUNDA PARTE: A criação do Graal
Capítulo 5
Século XII e o poeta mais famoso da Europa...........................73
Capítulo 6
A invenção do Graal.............................................................. 105
TERCEIRA PARTE: A herança do Graal
Capítulo 7
Os novos poetas e escritores do Graal ................................ 147
7.1 – Manuscritos do Pseudo-Wauchier, 150
7.2 – Manuscritos de Wauchier de Denain, 153
7.3 – Textos de Gerbert de Montreuil, 156
7.4 – Manuscritos de Manessier , 161
7.5 – O anônimo de Peredur e seu Perceval Bárbaro, 165
7.6 – Robert de Boron, 166
7.7 – O anônimo de Le Grand Graal e seu Graal-Livro, 172
7.8 – Século XIII e o poeta mais famoso da
Alemanha: Wolfram von Eschenbach, 172
Capítulo 8
Longinus, a Lança Santa, o Cálice Santo............................. 224
Capítulo 9
José de Arimatéia e Maria
Madalena incorporados ao Graal.......................................... 255
Capítulo 10
O material histórico da saga
do Graal e os personagens................................................... 259
Capítulo 11
A escalada do Graal.............................................................. 265
11.1 – O Graal nos principais poemas do ciclo literário
medieval e sua essência, 265
11.2 – Thomas Malory, 267
11.3 – Alfred Tennyson, 271
11.4 – Richard Wagner, 276
11.5 – Oskar Ernst Bernhardt, 290
11.6 – Roselis von Sass, 349
11.7 – A herança literária arturiana absorvida
pelas pessoas, 363
11.8 – A última geração de escritores, 364
Capítulo 12
A explicação sexual do Graal............................................... 372
Capítulo 13
Uma ordem honorífica de cavaleiros.................................... 377
Capítulo 14
Mais reflexões sobre o Graal................................................ 382
14.1 – Consciência dos séculos XIX e XX, 382
14.2 – A História desmistifica o Graal, 386
14.3 – A análise psicológica do Graal, 388
14.4 – O mais santo de tudo e a
origem espiritual das estórias, 391
Epílogo: Os caminhos do Graal........................................... 393
Anexo: O cinema e o Graal.................................................. 399
Bibliografia........................................................................... 401
.
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BIBLIOGRAFIA
FONTES IMPRESSAS:
—ABDRUSCHIN. Na Luz da Verdade, Mensagem do Graal. Im Lichte Der Wahrheit, Edição Portuguesa; único volume; edição completa com 762 pp., Verlag “Der Ruf” G. M. B. H. Muenchen. Distribuidor A. Machado Leite, São Paulo – SP. Impressão: “Empresa da Revista dos Tribunais”. Edição de 1934.
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—____________. Na Luz da Verdade, vol. I, 1ª edição (1999) e vol. II, 1ª edição (2005). Editora Stiftung Gralsbotschaft, Stuttgart. Printed in Germany.
—____________. Na Luz da Verdade, Mensagem do Graal, vol. 1, 1ª e 8ª edições (19 ? e 2002); vol. 2, 1ª e 5ª edições (19 ? e 1995); e vol. 3, 1ª e 5ª edições (19 ? e 1993). Embu, SP: Editado pela Ordem do Graal na Terra.
—____________. Exortações, Alocuções dos anos de 1934 a 1937 (1ª ed. alemã: 1949). Embu, SP: Editado pela Ordem do Gral na Terra. Sem o ano da edição em português.
—____________. O que a Humanidade perdeu. Embu, SP: Editado pela Ordem do Graal na Terra. Sem o ano de edição.
—____________. Respostas a Perguntas de 1924 a 1937 (1ª ed. alemã: 1953). Embu, SP: Editado pela Ordem do Graal na Terra, 1ª e 3ª edições, 19(?) e 1993 (revisada e ampliada).
—____________. Os Dez Mandamentos de Deus e o Pai Nosso (1ª ed. alemã: 1955). Embu, SP: Editado pela Ordem do Graal na Terra, 4ª edição, 1993.
—ANÔNIMO. A Vida de Abdruschin, coleção “O Mundo do Graal”. Embu, SP: Editado pela Ordem do Graal na Terra. Sem o ano de edição.
—ANÔNIMO. Buddha, coleção “O Mundo do Graal”, 5ª edição, pp. 329-30. Embu, SP: Editado pela Ordem do Graal na Terra, 2002.
—ANÔNIMO. Os Apóstolos de Jesus, coleção “O Mundo do Graal”, pp. 42-3, 55-58. Embu, SP: Editado pela Ordem do Graal na Terra, 2002.
—ANÔNIMO. Ecos de Eras Longínquas, coleção “O Mundo do Graal”, pp. 64-5, edição esgotada. Embu, SP: Editado pela Ordem do Graal na Terra. Sem o ano de edição.
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http://www.fuocosacro.com/pagine/mitologia/graal.htm
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―http://pt.wikipedia.org/wiki/Abdruschin
—http://pt.wikipedia.org/
—http://fr.wikisource.org/wiki/Perceval_ou_le_conte_du_Graal
Novamente:
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